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Artigo Original

Uso de retalhos em queimaduras elétricas nos últimos 10 anos

The use of flaps in electrical burns in 10 years

Cíntia Mara de Carvalho1; Orlando Ferrari Neto1; Gladstone Eustáquio de Lima Faria1; Dimas André Milcheski2; David de Souza Gomez2; Marcus Castro Ferreira3

RESUMO

OBJETIVO: Relatar os retalhos realizados para tratamento cirúrgico de queimaduras elétricas na Unidade de Queimaduras da Divisao de Cirurgia Plástica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de Sao Paulo (HCFMUSP), nos últimos 10 anos.
MÉTODO: Revisao de prontuários médicos de pacientes vítimas de queimaduras elétricas com indicaçao de realizaçao de retalhos. Os pacientes foram atendidos na Unidade de Queimaduras do HCFMUSP, no período de novembro de 2001 a maio de 2012.
RESULTADOS: Trauma elétrico ocorreu em 149 pacientes, dos quais 26,8% foram submetidos á confecçao de retalhos. A maioria dos pacientes era do sexo masculino e jovens (idade média de 25 anos). O ferimento de entrada envolveu maos ou antebraço em 92,5% dos casos. Fasciotomia foi necessária em 27,5% das vítimas e amputaçao, em 30% delas. Cinquenta e quatro retalhos foram usados, a maioria locais (37%) e cutâneos (68,5%). O retalho livre foi utilizado em 37% dos casos.
CONCLUSOES: Os traumas elétricos, em especial os de alta voltagem, frequentemente causam necrose e exposiçao de estruturas especializadas no ponto de contato com o meio externo, necessitando de procedimentos repetidos e de alta complexidade para o seu tratamento.

Palavras-chave: Queimaduras elétricas. Unidades de queimados. Retalhos cirúrgicos.

ABSTRACT

PURPOSE: To describe a 10 year experience of using flaps for the treatment of electrical burns at the Burn Unit of the Plastic Surgery Division at HC-FMUSP.
METHOD: This study reviewed medical records of victims of electrical burns in which flaps were used. These victims were treated from November 2001 to May 2012.
RESULTS: Electrical trauma occurred in 149 patients, and 26.8% of them were submitted to flap confection. Most of the patients were male and young (25 years on average). The point of contact involved the hands and/or forearm in 92.5% of the cases, requiring fasciotomy in 27.5% of the victims and amputations in 30%. Fifty four flaps were used in the treatment of the 40 patients. Most of the flaps were local (37%), and cutaneous (68.5%). The free flap was used in 37% of patients.
CONCLUSIONS: The electrical trauma, particularly the high voltage one, often causes necrosis and exposure of specialized structures and requires repeated procedures and a highly complex treatment.

Keywords: Burns, electric. Burns units. Surgical flaps.

Os traumas elétricos, em especial os de alta voltagem (>1000 V), sao causa de grande impacto socioeconômico, visto que apenas 5% de suas vítimas estarao aptas a retornar ao trabalho1. A queimadura elétrica por alta voltagem causa destruiçao, principalmente no ponto de contato (tipicamente o tornozelo e o punho)2, com necrose maciça de estruturas profundas e exposiçao de estruturas especializadas. A resoluçao desse tipo de ferida complexa se dá por meio de desbridamentos precoces seriados dos tecidos necróticos e subsequente cobertura da ferida3-5.

Em lesoes com exposiçao de estruturas especializadas, o uso de retalhos é a melhor alternativa para cobertura ou salvamento de membro2. Eles cobrem a ferida em um único tempo cirúrgico e podem ser realizados ainda na fase aguda da queimadura, resultando em reabilitaçao mais precoce, menores taxas de morbidade e menor tempo de internaçao6,7.

Os retalhos podem ser classificados de acordo com sua localizaçao, composiçao e método de transferência8. A escolha do retalho a ser utilizado é baseada nas características do tecido desejado para o leito receptor, na presença de área doadora nao queimada, devendo ser considerada, ainda, a experiência do cirurgiao. No caso de retalhos livres, baseia-se, também, no comprimento do pedículo e na disponibilidade dos vasos receptores3.

O presente estudo tem como objetivo relatar o uso de retalhos para tratamento cirúrgico de queimaduras elétricas na Unidade de Queimaduras da Divisao de Cirurgia Plástica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de Sao Paulo (HCFMUSP), nos últimos 10 anos.


MÉTODO

Realizou-se estudo retrospectivo por meio da revisao de prontuários médicos de pacientes vítimas de queimaduras elétricas com exposiçao de estruturas especializadas (tendoes, ossos, nervos, vasos e articulaçoes), com indicaçao de realizaçao de retalhos. Os pacientes foram atendidos na Unidade de Queimaduras do HCFMUSP, no período de novembro de 2001 a maio de 2012. Os pacientes admitidos para reconstruçoes tardias, ou que nao finalizaram o tratamento nesse serviço, foram excluídos do trabalho. O estudo foi aprovado pelo Comitê de ética Médica do HCFMUSP.

Foram avaliados parâmetros clínico-epidemiológicos, como gênero, idade, voltagem, superfície corporal queimada e topografia dos ferimentos, além de dados de terapêutica, como necessidade de fasciotomia á admissao, taxa de amputaçoes, uso de terapia por pressao negativa, número de desbridamentos e confecçao de retalhos para cobertura cutânea definitiva.


RESULTADOS

No período analisado, 149 pacientes sofreram trauma elétrico. Desses, 26,8% (n=40) foram submetidos á confecçao de retalhos (33 vítimas de queimadura elétrica de alta voltagem e sete de baixa voltagem). A média de idade dos pacientes foi de 25 anos e 75% eram do sexo masculino (n=30). A porcentagem de superfície corporal queimada foi, em média, de 12% (14,1% na queimadura de alta voltagem e 1,5% na de baixa voltagem).

O ferimento de entrada envolveu as maos e/ou antebraço em 92,5% dos casos (n=37). Onze (27,5%) pacientes, todos vítimas de trauma elétrico de alta voltagem, apresentaram diagnóstico de síndrome compartimental, necessitando de fasciotomia á admissao. Em 30% dos casos (10 vítimas de queimadura de alta voltagem e dois de baixa voltagem), a amputaçao foi indicada durante o tratamento, sendo que, em 50% desses, o segmento amputado tratou-se exclusivamente de quirodáctilos ou pododáctilos.

Foram realizados 5,3 procedimentos cirúrgicos por paciente, em média. Treze (32,5%) pacientes fizeram uso da terapia por pressao negativa (VAC), geralmente como ponte entre o debridamento inicial e a terapêutica definitiva para cobertura cutânea. Se considerarmos apenas os últimos 5 anos, período no qual essa terapêutica tornou-se mais frequente na Unidade de Queimaduras, essa porcentagem sobe para 59%.

Foram confeccionados 54 retalhos para cobertura dos ferimentos de 40 pacientes. Destes, 37 foram cutâneos, seis fasciocutâneos e 11 musculocutâneos (Tabela 1).




Em relaçao á vascularizaçao dos retalhos, 20 foram randomizados, 19 axiais e 15 livres (Tabela 2).




Quanto á sua proximidade com a área receptora, 20 retalhos foram locais, 15 microcirúrgicos,14 regionais pediculados e cinco pediculados á distância (Tabela 3).




Dos 54 retalhos confeccionados, nove (16,6%) apresentaram perda (quatro casos de perda total e cinco de perda parcial do retalho).

Os pacientes permaneceram internados por 47 dias, em média. Houve apenas um (2,7%) óbito nessa casuística, em vítima de trauma elétrico de alta voltagem, por choque séptico.


DISCUSSAO

Os traumas elétricos, principalmente os de alta voltagem, causam graus variáveis de lesao cutânea, associada a grande destruiçao de tecidos profundos e exposiçao de estruturas especializadas9, em especial nos ferimentos de entrada e saída com o meio externo. A gravidade da lesao tecidual depende principalmente da voltagem, da distância entre o ponto de entrada e de saída, da corrente elétrica, do tempo de contato e das áreas corpóreas protegidas por roupas e acessórios10.

A extremidade dos membros superiores esteve envolvida no ferimento de entrada na quase totalidade dos casos (91,8%). Nessas ocorrências, é comum o desenvolvimento de síndrome compartimental e exposiçao de tendoes, vasos, nervos e ossos, sendo muitas vezes difícil a preservaçao do membro, mesmo em condiçoes ideais. A amputaçao pode ser indicada em até 40% dos pacientes vítimas de traumas elétricos de alta voltagem11 e foi necessária em 30% dos pacientes nessa casuística.

A síndrome compartimental tem diagnóstico essencialmente clínico, baseado em sintomas e sinais, como lesoes circunferenciais, tensao no compartimento muscular, parestesia e diminuiçao de sensibilidade local, dor, diminuiçao ou ausência de pulsos distais. A síndrome compartimental deve ser antecipada nos ferimentos de alta voltagem em extremidades e deve ser tratada precocemente, a fim de evitar a perda e a funçao de membros12.

A fasciotomia permite o retorno adequado da perfusao sanguínea aos tecidos isquêmicos e favorece a avaliaçao da viabilidade dos tecidos profundos. Nas lesoes em maos e punhos, deve ser efetuada a liberaçao do nervo ulnar e do túnel do carpo, pela possibilidade de compressao nervosa9.

Tradicionalmente, as fasciotomias eram tratadas de forma aberta e, depois, cobertas com enxertos de pele ou fechadas primariamente. Assim como em diversos centros, a Unidade de Queimaduras do HCFMUSP atualmente utiliza terapia por pressao negativa (vácuo) diretamente sobre a fasciotomia desde o procedimento inicial, resultando em diminuiçao do edema13 e fechamento primário mais precocemente que nas técnicas tradicionais.

O vácuo, além de atuar como curativo confortável,permite melhor definiçao da viabilidade das estruturas em debridamentos seriados, aumenta a perfusao do tecido adjacente á queimadura14, imobiliza enxertos de pele e diminui o acúmulo de líquido e a taxa de infecçao nos mesmos, levando ao aumento das taxas de integraçao15-17.

Embora nao haja estudos randomizados comparando a terapia por pressao negativa aos curativos tradicionais com gaze no fechamento de fasciotomias, há evidências de que o vácuo diminui o tempo de fechamento ou enxertia18,19.

A reconstruçao cirúrgica em queimaduras, tradicionalmente, compreendia excisao tangencial, seguida de enxertia. Entretanto, quando há exposiçao de estruturas especializadas, de tecidos desprovidos de membrana ou de área sobre implantes, a enxertia já nao oferece boa cobertura, sendo indicado o uso de retalhos20. Independentemente do retalho escolhido, o essencial é fornecer boa irrigaçao sanguínea, proporcionando maior vitalidade e regeneraçao10.O uso de retalhos para pacientes com queimaduras elétricas comumente produz bons resultados21-24.

O tipo varia em relaçao ao nível de complexidade: desde retalhos cutâneos locais simples a retalhos livres (microcirúrgicos). Os retalhos podem ser classificados: a) de acordo com seu tipo de tecido, em: cutâneo, fasciocutâneo, musculocutâneo ou osteocutâneos; b) conforme a origem de suprimento sanguíneo, em: randomizados, axiais ou livres25; c) com base em seu planejamento e transferência, em: de avanço, rotaçao, transposiçao, interpolaçao; e, d) com relaçao á sua proximidade com a área receptora, em: local, regional, pediculado á distância ou livre.


CONCLUSAO

Os traumas elétricos, em especial os de alta voltagem, frequentemente causam necrose e exposiçao de estruturas especializadas no ponto de contato com o meio externo (usualmente as maos), necessitando de procedimentos repetidos e de alta complexidade para o seu tratamento. Devem, portanto, ser acompanhados em centros de referência em queimaduras, idealmente com cirurgiao de mao, visando ao tratamento correto, prevençao de sequelas e reabilitaçao.


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1. Médico residente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de Sao Paulo (HCFMUSP), Sao Paulo, SP, Brasil.
2. Médico assistente da Divisao de Cirurgia Plástica do HCFMUSP, Sao Paulo, SP, Brasil.
3. Professor titular da Disciplina de Cirurgia Plástica da FMUSP, Sao Paulo, SP, Brasil.

Correspondência:
Cíntia Mara de Carvalho
Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255 - Cerqueira César
Sao Paulo, SP, Brasil - CEP: 05403-000
E-mail: cintiapp@hotmail.com

Artigo recebido: 23/11/2012
Artigo aceito: 2/2/201

Trabalho realizado no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de Sao Paulo (HCFMUSP), Sao Paulo, SP, Brasil.

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