20359
Visualizações
Acesso aberto Revisado por pares
Artigo Especial

Terapia nutricional no paciente queimado

Nutritional therapy in burn patient

Maria Cristina do Valle Freitas Serra1; Andréia De Luca Sacramento2; Luana Monteiro da Costa3; Patrícia Brito Ramos3; Luiz Macieira Guimarães Junior4

RESUMO

Em pacientes queimados, o hipermetabolismo estimula o aumento das necessidades protéico-calóricas, influencia no início da nutriçao precoce, assim que estabilizados hemodinamicamente. O suporte nutricional e metabólico atenua a sepse, diminui o risco de complicaçoes em pacientes graves, minimiza a resposta metabólica ao trauma e suas consequências, como a perda de peso, a reduçao dos mecanismos de defesa e a diminuiçao do processo cicatricial. Alguns nutrientes, como glutamina, arginina, antioxidantes e ácidos graxos, têm efeito imunomodulador. É indicada terapia nutricional enteral (TNE) em pacientes que apresentem superfície corporal queimada (SCQ) acima de 30% em adultos, 20% em crianças ou ainda apresentando lesoes graves. A terapia nutricional parenteral (TNP) só deve ser indicada em casos de íleo paralítico ou na impossibilidade total de utilizaçao do tubo digestivo. Várias equaçoes foram propostas para estimar o gasto energético em pacientes queimados; a mais popular é a de Curreri, porém indica-se a calorimetria indireta como avaliaçao de gasto energético basal em pacientes com SCQ superior a 40%. As medidas antropométricas, bioquímicas e imunológicas sofrem alteraçoes, devido à grande instabilidade hemodinâmica comum na fase inicial das queimaduras. O indicativo de uma resposta terapêutica adequada é a estabilizaçao dos níveis séricos de albumina e de outras proteínas, além da evoluçao do processo cicatricial das lesoes. O objetivo deste trabalho é demonstrar a importância da terapia nutricional em pacientes grandes queimados.

Palavras-chave: Queimaduras. Terapia nutricional. Apoio nutricional.

ABSTRACT

In burn patients, the hypermetabolism stimulates increased protein and caloric needs, influences the onset of early nutrition, so stabilized hemodynamically. The nutritional and metabolic support attenuates sepsis, reduces the risk of complications in critically ill patients, minimizing the metabolic response to trauma and its consequences such as weight loss, reduction of defense mechanisms and the reduction of the healing process. Some nutrients such as glutamine, arginine, antioxidants, fatty acids have immunomodulating effect. Enteral nutrition therapy (ENT) is indicated in patients who have above 30% body surface area (BSA) in adults, 20% in children presenting or serious injury. Parenteral nutrition therapy (NPT) should only be recommended in cases of ileus or inability to use the total digestive tract. Several equations have been proposed to estimate energy expenditure in burn patients; the most popular is the Curreri, but indicates the indirect calorimetry and assessment of resting energy expenditure in patients with BSA greater than 40%. The anthropometric, biochemical and immunological changes are suffering because of hemodynamic instability common in the early stage of burns. The indicator of an adequate therapeutic response is the stabilization of serum albumin and other proteins, and the evolution of the healing process of injuries. The objective of this study is to demonstrate the importance of nutrition therapy in severe burn patients.

Keywords: Burns. Nutrition therapy. Nutritional support.

O suporte nutricional e metabólico é essencial no paciente grave para a reduçao da mortalidade. O déficit nutricional predispoe à sepse e aumenta o risco de complicaçoes1.

Algumas questoes norteiam nossos primeiros passos em relaçao à terapia nutricional a ser instituída: Por quê nutrir? Quando nutrir? Como nutrir? Utilizando que substratos?

1. Por que nutrir?

O paciente gravemente queimado manifesta maior grau de hipermetabolismo quando comparado a qualquer outra situaçao de estresse. A gravidade e a duraçao da resposta hipermetabólica estao diretamente relacionadas com a gravidade da lesao, podendo alcançar cifras de até 150 a 200% acima dos valores basais2.

2. Quando nutrir?

O mais cedo possível. O ideal é iniciar nas primeiras 6 horas3,4.

3. Como nutrir?

Os pacientes com queimaduras ocupando mais de 25% da superfície corporal (SC) e as crianças com superfície corporal queimada (SCQ) acima de 15% merecem maior atençao no aspecto nutricional, uma vez que raramente sao capazes de ingerir quantidade suficiente de nutrientes para manter uma nutriçao adequada. Porém, sao nas lesoes graves (segundo e terceiro graus), que comprometem mais de 30% da SC dos adultos e 20% da SC das crianças, que se indica a terapia nutricional por sonda, após a estabilidade hemodinâmica5,6.

Em casos de área queimada inferior a 20%, a terapia nutricional pode ser instituída quando:

  • Há história prévia de desnutriçao;
  • Perda de peso importante no decorrer da internaçao;
  • Em lesoes de cavidade oral que limitem a ingestao diária;
  • Em situaçoes de doenças associadas, como fraturas ou trauma de crânio.


  • 3.1. A dieta por via oral

    A via oral inicia-se nas primeiras 6 horas pós-injúria, com consistência e volume adaptados de acordo com a tolerância de cada paciente, mesmo em queimaduras mais graves, que cursam com maior instabilidade, ou nas lesoes de face, onde a dieta líquida é melhor tolerada5.

    As complicaçoes mais frequentes podem estar associadas a quadro de náuseas, vômitos e distensao abdominal, principalmente na fase inicial, sendo minimizado com uso regular de antieméticos.

    Normalmente pacientes com SCQ igual ou inferior 20% conseguem obter adequado aporte protéico-calórico somente pela via oral, podendo ser indicada em alguns casos a utilizaçao de suplementos5.

    3.2 A nutriçao por sonda

    A nutriçao enteral (NE) por sonda, associada à dieta oral, está indicada em pacientes com SCQ superior a 30% ou em casos de comprometimento do estado nutricional prévio ou no decorrer da internaçao. Foi demonstrado que o início da alimentaçao enteral logo após o trauma atenua marcadamente a resposta hipermetabólica7.

    3.3 Estratégia na administraçao da dieta

    O total calórico da dieta é dividido entre a via oral e enteral. A dieta por via oral é sempre mantida e, conforme o paciente comece a aceitar melhor a dieta oral e a queimadura a cicatrizar, diminui-se o volume da enteral e aumenta-se o volume oral, até a retirada completa da enteral4,8.

    O volume inicial da dieta enteral é de aproximadamente 1000 ml para os adultos e 1 a 2 ml/kg/hora para as crianças4,8,9.

    O volume é aumentado gradativamente, observando-se sempre sinais de intolerância à dieta, como:

  • Distensao abdominal;
  • Vômitos;
  • Diarreia.


  • Na grande maioria das vezes, a intolerância ocorre em razao do gotejamento acelerado da dieta enteral. Para que isso nao ocorra é importante o uso de bomba de infusao4,9.

    4. Utilizando que substratos?

    Embora existam controvérsias com relaçao à composiçao ideal da nutriçao a ser oferecida, fica claro que estes pacientes requerem quantidades aumentadas de calorias e proteínas. A desnutriçao protéico-calórica no queimado é evidenciada por grande perda de peso e balanço nitrogenado acentuadamente negativo, consequências comuns da resposta metabólica à queimadura2,10,11.

    A oferta de carboidratos é fundamental, já que a área queimada e os componentes celulares do sistema imune sao consumidores de glicose. Além disso, a administraçao de carboidratos minimiza o catabolismo protéico2,11.

    A oferta de lipídeos complementa com a glicose o preenchimento das necessidades energéticas, fornece ácidos graxos essenciais e propicia um melhor balanço nitrogenado. Os lipídeos tornaram-se reconhecidos como moduladores do metabolismo, com importantes funçoes nutricional, estrutural e reguladora. A provisao de 25% a 30% das calorias nao protéicas minimiza os problemas gerados com a administraçao excessiva de glicose2,6,12.

    O metabolismo protéico é profundamente alterado. Os aminoácidos constituem a principal fonte energética na fase aguda da lesao. A alanina e a glutamina sao maciçamente mobilizadas para gliconeogênese. A reposiçao de proteínas é importante para melhora na sobrevida e no processo cicatricial1,4.

    Mantendo a relaçao kcal nao protéica/nitrogênio em 100:1, observou-se melhora no balanço nitrogenado e na sobrevida de pacientes com queimaduras graves. De modo geral, a oferta de 2-3 g/kg/dia suprem as necessidades diárias destes pacientes1,2,4.

    Com relaçao à estimativa do gasto energético nas queimaduras, existem várias equaçoes propostas, cada qual com suas vantagens e limitaçoes.

    4.1 Provisao de nutrientes específicos

    Os pacientes em estado crítico, como os grandes queimados, podem apresentar reduçao em até 25% de glutamina intracelular, podendo ocasionar consequências prejudiciais para mucosa intestinal e para o sistema imune13. Em pacientes queimados, a infusao recomendada é de 0,5 g/kg (máximo 30 g/dia).

    A arginina, também considerada um aminoácido condicionalmente essencial, exerce influência na resposta inflamatória e imune, além de ser muito importante no processo de cicatrizaçao, já que é indutor da angiogênese. A oferta suplementar de arginina aumenta a deposiçao de colágeno nas feridas, por mecanismos ainda nao totalmente compreendidos5,13.

    Estudos ainda revelam que a associaçao da dieta enteral enriquecida com arginina, fibras e antioxidantes tem diminuído a taxa de sepse em pacientes críticos. Dados relativos à suplementaçao de arginina (17 g/dia) sugerem melhora na cicatrizaçao e resposta imune8,13.

    Com relaçao aos ácidos graxos, uma vez que o ômega 6 (ácido linoléico) e o seu produto ácido araquidônico exercem efeito modulador sobre o sistema imunológico, por meio da produçao de prostaglandina, a quantidade e o tipo de lipídeo exógeno podem desempenhar um papel importante na resposta imune13.

    Vários tipos de ácidos graxos estao atualmente disponíveis para uso em pacientes graves. Segundo a British Nutrition Foundation, a relaçao ômega 6 : ômega 3 para o paciente crítico deve ser de 4:1. O aumento exagerado de ômega 3, com diminuiçao desta relaçao a níveis muito abaixo de 3:1, leva a alteraçoes nao desejáveis na coagulaçao sanguínea e na resposta inflamatória6,13.

    Estados graves inflamatórios, como queimaduras, geram enormes quantidades de radicais livres, cujas açoes deletérias nao encontram defesa suficiente nos agentes antioxidantes disponíveis1,2,6.

    Dentre os nutrientes com açao antioxidante salientam-se, principalmente, as vitaminas A, C e E, minerais, como zinco, selênio, e também a cisteína.

    Os requerimentos precisos em relaçao às queimaduras permanecem indeterminados, mas se admite que a oferta aumentada de vitaminas lipossolúveis e do complexo B é indicada1,2,8.

    5. Monitorizaçao da terapia nutricional no queimado

    O objetivo principal da terapia é minimizar a resposta metabólica ao trauma e suas consequências, como a perda de peso, a reduçao dos mecanismos de defesa e a diminuiçao do processo cicatricial.

    A monitorizaçao do paciente queimado nao é feita de forma convencional, uma vez que, durante a grande instabilidade hemodinâmica, comum na fase inicial das queimaduras, as medidas antropométricas, bioquímicas e imunológicas sofrem alteraçoes, sendo os valores obtidos limitados como índices nutricionais4,5,13.

    O balanço hídrico, muito utilizado na terapia intensiva, nao tem valor na queimadura, pois as perdas insensíveis sao de difícil quantificaçao. Desta forma, a monitorizaçao do volume urinário de 24 horas é importante para a programaçao de hidrataçao diária4,10.

    As grandes perdas nitrogenadas limitam a utilizaçao do balanço nitrogenado e a excreçao de creatinina. Os níveis de proteínas circulantes sao influenciados pelo aumento das taxas de síntese e degradaçao, perdas exudativas e transfusoes.

    A estabilizaçao dos níveis séricos de albumina e de outras proteínas, dentro de valores normais, é indicativa de resposta terapêutica adequada2,6.

    A terapia nutricional deve ser ajustada e programada para suprir as necessidades diárias de nutrientes, considerando nao só o momento metabólico, mas também a programaçao cirúrgica, já que sao vários os procedimentos de desbridamento e enxertia.

    Desta forma, a avaliaçao clínica diária do paciente é de suma importância, pois é capaz de revelar alteraçoes importantes, que se corrigidas precocemente favorecem um menor tempo de internaçao.


    REFERENCIAS

    1. Macedo J. Imunodepressao no queimado: patogênese e fator de risco para sepse. Rev Bras Queimaduras. 2003;2(1):16-26.

    2. Demling RH, Seigne P. Metabolic management of patients with severe burns. World J Surg. 2000;24(6):673-80.

    3. Caparrós T, Lopez J, Grau T. Early enteral nutrition in critically ill patients with a high protein diet enriched with arginine, fiber, and antioxidants compared with a standard high-protein diet. Effect on nosocomial infections and outcome. JPEN J Parenter Enteral Nutr. 2001;25(6):299-308.

    4. Harsanyi L, Allison SP, Berger MM. Nutritional support in burn patients. ESPEN Congress Basics in Clinical Nutrition. 2001;234-9.

    5. Mayes T, Gottschlich MM. Burns. In: Matarese LE, Gottschlich MM, eds. Contemporary nutrition support practice. 1st ed. Philadelphia:Saunders;1998. p.590-607.

    6. Peck MD. Practice guidelines for initial nutritional support of burn patients. Annals ASPEN Congress; 2001;315-9.

    7. Garrel D, Patenaude J, Nedelec B, Samson L, Dorais J, Champoux J, et al. Decreased mortality and infectious morbidity in adult burn patients given enteral glutamine supplements: a prospective, controlled, randomized clinical trial. Crit Care Med. 2003;31(10):2444-9.

    8. Sacramento ADL, Serra MC, Gomes DR. Terapia nutricional no paciente queimado. In: Maciel E, Serra MC, eds. Tratado de queimaduras. Rio de Janeiro:Atheneu;2004. p.267-74.

    9. Serra MC. A criança queimada. In: Gomes DR, Serra MCVF, Pellon MA, eds. Queimaduras. Rio de Janeiro:Revinter;1995. p.41-66.

    10. Herndon DN, Rutan RL, Rutan TC. Management of the pediatric patient with burns. J Burn Care Rehabil. 1993;14(1):3-8.

    11. Hart DW, Wolf SE, Herndon DN, Chinkes DL, Lal SO, Obeng MK, et al. Energy expenditure and caloric balance after burn: increased feeding leads to fat rather than lean mass accretion. Ann Surg. 2002;235(1):152-61.

    12. Lameu E, Andrade P. Resposta endócrino-metabólica ao trauma. In: Maciel E, Serra MC, eds. Tratado de queimaduras. Rio de Janeiro:Atheneu;2004. p.267-74.

    13. Zhou YP, Jiang ZM, Sun YH, Wang XR, Ma EL, Wilmore D. The effect of supplemental enteral glutamine on plasma levels, gut function, and outcome in severe burns: a randomized, doubleblind, controlled clinical trial. JPEN J Parenter Enteral Nutr. 2003;27(4):241-5.










    1. Coordenadora pediátrica do Centro de Tratamento de Queimados (CTQ) do Hospital Federal do Andaraí, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
    2. Nutricionista com mestrado em nutriçao do CTQ do Hospital Federal do Andaraí, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
    3. Nutricionistas do CTQ do Hospital Federal do Andaraí, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
    4. Chefe do CTQ do Hospital Federal do Andaraí, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

    Correspondência:
    Maria Cristina do Valle Freitas Serra
    Hospital Geral do Andaraí, Centro de Tratamento de Queimados
    Rua Leopoldo, 280 - Andaraí
    Rio de Janeiro, RJ, Brasil - CEP 20541-170
    E-mail: mcriss@superig.com.br

    Artigo recebido: 11/5/2011
    Artigo aceito: 16/6/2011

    Trabalho realizado no Hospital Geral do Andaraí, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

    © 2024 Todos os Direitos Reservados