746
Visualizações
Acesso aberto Revisado por pares
Artigo Original

Análise do método clínico no diagnóstico diferencial entre queimaduras de espessura parcial e total

Analysis of clinical method in the differential diagnosis between partial and total thickness burns

Aline P. Garcia1; Vinícius Pollo2; José Antonio de Souza3; Edevard José de Araujo3; Rodrigo Feijó3; Maurício José Lopes Pereima3

RESUMO

Objetivo: Analisar os parâmetros clínicos das queimaduras como fatores preditivos para o diagnóstico diferencial entre queimaduras de espessura parcial e total, relacionando o diagnóstico inicial das lesoes ao diagnóstico evolutivo após duas semanas. Método: Estudo prospectivo, descritivo e longitudinal por meio da análise de parâmetros clínicos (sensibilidade, umidade, coloraçao e retorno do preenchimento capilar) de 89 queimaduras em crianças internadas na Unidade de Queimados do Hospital Infantil Joana de Gusmao com superfície corporal queimada menor ou igual a 20%, nas primeiras 48 horas, com formulaçao de uma hipótese diagnóstica inicial. Após 14 dias da agressao térmica, as lesoes foram novamente reavaliadas: a presença de reepitelizaçao espontânea definiu queimaduras de espessura parcial e sua ausência definiu lesoes de espessura total. Resultados: Os valores preditivos positivos dos parâmetros clínicos foram: coloraçao da área lesada (70,67%), retorno do preenchimento capilar (70,58%), presença de umidade (69,56%) e presença de sensibilidade (69,23%). O método clínico obteve uma acurácia de 83,15% no diagnóstico diferencial entre queimaduras de espessura parcial e total, nas primeiras 48 horas. Conclusoes: Concluiu-se que a coloraçao da queimadura foi o parâmetro clínico que apresentou o melhor valor preditivo positivo (70,67%) para o diagnóstico de queimadura de espessura parcial e o método clínico foi adequado para o diagnóstico da profundidade das queimaduras em 83,15% das lesoes com dúvidas quanto à sua profundidade, nas primeiras 48 horas.

Palavras-chave: Queimaduras. Criança. Unidades de queimados/estatística & dados numéricos.

ABSTRACT

Objective: Analyze clinical parameters of burns as predictive factors to the differential diagnosis of partial and total thickness, associating the initial diagnosis to the evolutive diagnosis after two weeks. Methods: Prospective, descriptive and longitudinal study that analyzed the clinical parameters (sensibility, humidity, capillary refill and color) of 89 burns sites in pediatric patients at the Burn Care Center of Hospital Infantil Joana de Gusmao; with 20% maximum total burned surface area, at the first 48 hours, making a diagnosis hypothesis by that time. After 14 days from the thermal injury, the wounds were analyzed and distributed as partial or total thickness regarding the presence or absence of spontaneous epitelization. Results: The positive predictive value for each clinical parameter was: wound color (70.67%), capillary refill (70.58%), humidity (69.56%) and sensibility (69.23). The accuracy of the clinical assessment was 83.15%. Conclusions: The burn wound color was the best parameter to predict the partial thickness burns and the clinical method was adequate to assess the burn depth in 83.15% of the wounds in witch, at the first 48 hours, there were doubts regarding its thickness.

Keywords: Burns. Child. Burn units/statistics & numerical data.

A pele é o órgao de revestimento que limita o meio interno e sua integridade é fundamental para manutençao da homeostase hidroeletrolítica, temperatura, flexibilidade, proteçao e lubrificaçao da superfície, além de participar do sistema sensorial e exercer funçao imunológica1.

É o maior órgao do corpo humano e é dividido em epiderme e derme. Na derme descrevem-se duas camadas de limites pouco distintos: a camada papilar (superficial), e a reticular (mais profunda).

Dentre os parâmetros físico-químicos necessários à manutençao da estrutura e funcionalidade da pele, a temperatura encontra papel de destaque. A aplicaçao de certos tipos de energia sobre esse tecido numa taxa maior que sua capacidade de dissipar caracteriza a queimadura. Além das fontes de calor, também pode resultar da exposiçao a agentes químicos, radiaçao ionizante, radiaçao eletromagnética e corrente elétrica.

No Brasil, estima-se que ocorra um milhao de casos de queimadura por ano, com 2.500 óbitos em decorrência direta ou indireta2. No Hospital Infantil Joana de Gusmao (HIJG), localizado em Florianópolis, e centro de referência para queimados no Estado de Santa Catarina, um estudo realizado entre janeiro de 1991 e dezembro de 2004 demonstrou 1.003 internaçoes de crianças diagnosticadas com queimaduras, numa média de 71,64 casos/ano, denotando a importância deste agravo à populaçao3.

A resposta local, traduzida por necrose de coagulaçao tecidual e progressiva trombose dos vasos adjacentes, ocorre num período de 12 a 48 horas. Essa resposta foi subdividida em três zonas: (1) área central de necrose - coagulaçao vascular irreversível e perda completa do tecido; (2) zona de estase - alentecimento do fluxo sanguíneo capilar, com viabilidade tissular, (3) zona de hiperemia, mais externa, onde se verifica aumento da perfusao local, e que se recupera com facilidade na ausência de hipoperfusao prolongada ou infecçao4.

A profundidade da queimadura varia segundo o grau de destruiçao celular e, conforme a Sociedade Brasileira de Queimaduras, pode ser classificada em: (1) espessura parcial superficial, atinge apenas a epiderme e a camada papilar da derme; (2) parcial profunda, alcança a camada reticular; e (3) espessura total, lesao profunda, atinge subcutâneo5.

A habilidade da pele em regenerar-se depende da profundidade da lesao na derme, que contém macrófagos, fibroblastos, fatores de crescimento e da reserva epitelial formada pelos folículos pilosos. Estes contêm camadas epidérmicas da membrana basal responsáveis pela regeneraçao tecidual. Assim, lesoes de epiderme e derme papilar apresentam tendência à recuperaçao com sequelas mínimas, enquanto as lesoes de derme reticular sao de recuperaçao mais demorada e com potencial de cicatrizes hipertróficas e sequelas mais sérias6.

Lesoes de espessura parcial recebem tratamento clínico e conduta expectante, enquanto lesoes de espessura total serao submetidas à excisao precoce e fechamento imediato com enxertos autólogos ou substitutos dérmicos. Assim, a classificaçao anatômico-estrutural das queimaduras nas três categorias possui valor inquestionável.

A extensao vertical da destruiçao tecidual pode ser descrita a partir de critérios clínicos - sensibilidade, cor, tempo de enchimento capilar e umidade - que orientam o tratamento e apresentam valor prognóstico. As queimaduras de espessura parcial superficial sao dolorosas, eritematosas, ficam esbranquiçadas ao toque e, podem apresentar bolhas, enquanto as queimaduras de espessura parcial profunda têm aspecto mais pálido e amolecido, nao ficam esbranquiçadas ao toque, mas preservam a sensibilidade. As lesoes de espessura total mostram uma superfície menos dolorosa, sem umidade, com coloraçao negra, branca ou marmórea7,8.

Todavia, o diagnóstico da queimadura quanto à profundidade comumente constitui-se num desafio, dada a subjetividade dos critérios utilizados e às mudanças dinâmicas no período posterior à queimadura, que podem resultar na conversao da queimadura de espessura parcial em total4,6.

Na prática, as queimaduras podem ser divididas em dois grupos: aquelas que reepitelizam espontaneamente com tratamento conservador e as que necessitam de tratamento cirúrgico9. Infelizmente, essa classificaçao por vezes torna-se simplista, já que certos casos nao demonstram nitidamente a que grupo pertencem. Nessas ocasioes, a profundidade da queimadura é melhor definida pelo tempo necessário à reepitelizaçao. O grande problema é que o tempo está intimamente ligado ao desenvolvimento de sequelas10,11.

Estudos apontam que queimaduras que reepitelizam em até duas semanas possuem risco de sequela desprezível, enquanto no grupo em que a reepitelizaçao ocorre entre duas e três semanas a probabilidade de alteraçoes estético-funcionais varia bastante. Em contrapartida, lesoes que perduram por mais de três semanas, sem regeneraçao dermo-epidérmica, sao extremamente sujeitas a sequelas.

Tecnologias recentes têm contribuído sobremaneira no aumento da acurácia diagnóstica, como o uso de microscopia transcutânea, termografia, laser doppler e a avaliaçao histológica utilizando biopsia. Entretanto, nenhum desses métodos se tornou amplamente utilizado, devido, pelo menos em parte, à falta de consistência nos resultados dos estudos e ao alto custo7.

A avaliaçao clínica continua, portanto, como método diagnóstico mais empregado, considerado como de melhor custo-benefício8. Sem necessidade de utilizaçao de instrumentos ou preparo prévio, parece ser uma maneira fácil e sem custo de categorizar a queimadura em relaçao à profundidade9.

O propósito deste trabalho é avaliar a acurácia do método clínico no diagnóstico diferencial entre queimaduras de espessura parcial e total na Unidade de Queimados do Hospital Infantil Joana de Gusmao, relacionando o diagnóstico inicial ao diagnóstico evolutivo após duas semanas.


MÉTODO

Trata-se de um estudo prospectivo, descritivo e longitudinal. Os casos do estudo foram selecionados dentre os pacientes internados na Unidade de Queimados do Hospital Infantil Joana de Gusmao que apresentaram até 20% de superfície corporal queimada (SCQ) e com intervalo livre - tempo entre ocorrência da lesao e chegada ao serviço médico - menor ou igual a 48 horas.

Foram internados 89 pacientes no período de setembro de 2008 a dezembro de 2009, seguindo os seguintes critérios: (1) mais de 10% de SCQ em queimadura de espessura parcial em maiores de 2 anos; (2) mais de 5% de SCQ em queimadura de espessura parcial em menores de 2 anos; (3) mais de 2% de SCQ em queimadura de espessura total em qualquer idade; (4) queimaduras significativas em face, maos, pés ou períneo; (5) queimaduras elétricas ou com inalaçao de fumaça; (6) queimaduras circunferenciais; (7) presença de comorbidades; (8) indicaçao social.

O estudo utilizou dados de história e exame clínico rotineiramente colhidos nos pacientes internados na Unidade de Queimados do HIJG. Os parâmetros avaliados incluíram sexo, idade, procedência, local do primeiro atendimento, intervalo livre, agente agressor, local onde ocorreu, superfície corporal queimada, unidade topográfica atingida e características clínicas da queimadura, e foram registrados em uma ficha de coleta de dados.

Os pacientes foram agrupados de acordo com idade (Marcondes1 modificada) e procedência, distribuídos de acordo com a divisao do Estado de Santa Catarina em messoregioes (IBGE, 2005). Para o cálculo da SCQ utilizou-se a avaliaçao proposta por Lund e Browder12. Cada paciente teve sua lesao descrita segundo critérios clínicos, que incluíam: presença de sensibilidade dolorosa e umidade, velocidade de retorno do preenchimento capilar e coloraçao da área queimada. Com base nestas observaçoes, elaborou-se um escore clínico para sintetizar os itens avaliados no exame físico, modificado de Leonardi13 (Quadro 1).




A presença de sensibilidade e do retorno do preenchimento capilar foi avaliada por meio de digitopressao sobre a lesao. Seguiuse a observaçao visual da coloraçao do tecido lesado: coloraçao rósea ou avermelhada definia retorno do preenchimento capilar presente, enquanto a permanência de uma coloraçao pálida por mais de dois segundos definia alentecimento ou ausência de retorno do preenchimento capilar. A umidade e a coloraçao foram avaliadas pela simples observaçao. A coloraçao foi classificada, subjetivamente, em duas categorias: rósea e nao rósea (Quadro 2).




Conforme suas características clínicas, distribuíram-se os pacientes em dois grupos: (1) grupo espessura parcial, cujas lesoes foram caracterizadas na admissao como de espessura parcial superficial ou profunda e tratadas de acordo com o protocolo da unidade; (2) grupo espessura total, pacientes cujas lesoes classificaram-se na admissao e foram tratadas de acordo com o protocolo da unidade.

Os grupos de estudo foram analisados após 14 dias, com verificaçao do desfecho em relaçao ao diagnóstico inicial - mantido ou inalterado. Neste momento, a reepitelizaçao espontânea foi definida como diagnóstico final de queimadura de espessura parcial e sua ausência foi definida como diagnóstico final de queimadura de espessura total, com necessidade de enxertia de pele. Os parâmetros clínicos utilizados foram entao comparados com o diagnóstico final e os dados submetidos à análise estatística.


RESULTADOS

A faixa etária mais acometida foi a dos lactentes, com 32 (35,96%) pacientes, e o sexo masculino apresentou maior incidência, com 55,06% (Tabela 1). Quanto à etnia, foi observada maior incidência de crianças brancas, com 73 dos 89 pacientes (Tabela 2).






A mesorregiao da Grande Florianópolis foi responsável pela procedência de 56,18% dos pacientes, enquanto a mesorregiao Sul Catarinense foi a segunda, com 15,73% (Tabela 3). Em relaçao ao local do primeiro atendimento, os hospitais apresentaram maior número de pacientes (83,14%). Os Centros de Saúde corresponderam ao local do primeiro atendimento em 16,85% dos pacientes (Tabela 4). Dos 89 pacientes, 82 (92,13%) chegaram ao Hospital Infantil Joana de Gusmao num intervalo de tempo menor que 8 horas, e 7 (7,87%) pacientes chegaram após este intervalo.






Quanto à aplicaçao de substâncias sobre a queimadura, antes do atendimento médico, mais da metade dos pacientes nao aplicou nenhuma substância, 24,72% lavaram com soro fisiológico ou água e, em mais de 20% dos casos, outras substâncias foram aplicadas (Tabela 5).




Os líquidos aquecidos foram os agentes causais de maior incidência, sendo responsáveis pelas lesoes de 30 dos 89 pacientes, seguidos pelo álcool, em 17,98% (Tabela 6).




O ambiente intradomiciliar foi o local de maior incidência dos acidentes, correspondendo a 80,90% dos pacientes, sendo a cozinha o local mais importante, com 49 (68,06%) casos (Tabela 7). O ambiente extradomiciliar foi o local de 17 dos 89 acidentes e o local de maior incidência foi a rua, com 10 casos (Tabela 8).






Em relaçao à SCQ, 31,46% dos pacientes apresentaram lesao com extensao entre 10% e 15% as SCQ, 28,09% apresentaram lesao com superfície corporal queimada de 5 a 10%, seguidos de 26,97% com 0,1 a 5% de extensao total da queimadura (Tabela 9).




As topografias mais atingidas foram o tórax, o braço/ antebraço e a face (Tabela 10).




Foi observada presença de sensibilidade em 78 das 89 lesoes e destas, 54 receberam diagnóstico final de queimadura de espessura parcial e 24 receberam diagnóstico final de espessura total. Apenas cinco queimaduras com diagnóstico final de espessura total nao apresentaram sensibilidade e, em seis lesoes que receberam o diagnóstico final de queimadura de espessura parcial a sensibilidade também estava afetada (Tabelas 11 e 12).






A presença de umidade foi observada em 77,53% das lesoes, sendo que 53,93% das lesoes receberam o diagnóstico final de queimadura de espessura parcial e 23,60% delas receberam diagnóstico final de queimadura de espessura total (Tabelas 13 e 14).






O retorno do preenchimento capilar estava presente em 76,40% dos casos de queimaduras, sendo que 53,93% apresentaram como diagnóstico final queimadura de espessura parcial, e 22,47% receberam como diagnóstico final queimadura de espessura total (Tabelas 11 e 12).

A coloraçao rósea foi observada em 75 (84,27%) lesoes, sendo que 53 pacientes receberam o diagnóstico final de queimadura de espessura parcial e 22 receberam o diagnóstico de queimadura de espessura total (Tabelas 11 e 12).

Os resultados dos cálculos referentes ao valor preditivo positivo, à sensibilidade, à especificidade e à acurácia relativos a cada uma das características clínicas analisadas, com intervalo de Confiança de 95%, estao descritos nas Tabelas 13 a 16.






A análise clínica das características das lesoes térmicas resultou na hipótese diagnóstica de queimadura de espessura parcial para 82,02% das queimaduras, sendo que 66,29% evoluíram com o diagnóstico final de queimadura de espessura parcial e 15,73% evoluíram com diagnóstico final de queimadura de espessura total. A mesma análise resultou na hipótese diagnóstica de queimadura de espessura total para 15 (16,85%) lesoes, sendo que apenas uma (1,12%) lesao evoluiu para o diagnóstico final de queimadura de espessura parcial (Tabela 17).




DISCUSSAO

A epidemiologia das queimaduras na infância é revisada em centros de tratamento de queimados de todo o mundo e acredita-se que sejam conhecidas todas as formas de acidentes envolvendo lesoes térmicas e fatores de risco associados. Entretanto, tais informaçoes epidemiológicas nao sao de conhecimento popular, contribuindo para a manutençao da elevada incidência3.

Mudanças ocorridas no manejo destes pacientes aumentaram significativamente a sobrevida e diminuíram a morbi-mortalidade, principalmente em funçao da compreensao de processos fisiopatológicos envolvidos, padronizaçao do primeiro atendimento, uso de antimicrobianos tópicos e intervençao cirúrgica precoce com excisao e enxertia14.

Já que lesoes de espessura parcial recebem conduta conservadora e lesoes de espessura total sao preferencialmente submetidas à excisao tangencial e enxertia, a determinaçao precisa da profundidade da queimadura é extremamente importante para assegurar uma terapêutica adequada e precoce14.

O Hospital Infantil Joana de Gusmao apresentou, neste estudo, maior frequência de primeiro atendimento, o que sugere a importância da Unidade de Queimados deste hospital como referência para o tratamento deste tipo de lesao, além da relativa facilidade de acesso e orientaçao dos médicos que realizaram o primeiro atendimento a respeito da importância do início o tratamento dentro das primeiras 8 horas.

Na maioria dos casos (53,93%), nenhuma substância foi aplicada sobre a lesao antes do atendimento médico, seguido de lavagem com soro fisiológico ou água com a mesma proporçao, enquanto alguns pacientes (21,35%) utilizaram outras substâncias, como pomadas e receitas caseiras (Tabela 5). Estes dados sugerem que 78,65% dos pacientes nao tiveram suas lesoes agravadas por conduta inadequada antes do primeiro atendimento, podendo-se concluir que existe bom nível de informaçao quanto à conduta inicial das queimaduras.

A maior parte dos acidentes (57,32%) foi causada por líquidos aquecidos (Tabela 6). Porém, 31,46% dos acidentes ocorreram com fogo ou álcool. Isto se deve ao fato de que crianças mais crescidas tornam-se curiosas, correndo ao redor de fogueiras, brincando com fósforos e isqueiros15. Dentre as substâncias inflamáveis, o álcool foi responsável pela maior parte dos acidentes (57,14%). Na faixa etária dos pré-escolares, as crianças têm capacidade de pegar todos os objetos ao seu alcance e maior tendência em derrubar recipientes contendo líquido aquecido sobre si mesmas, em direçao céfalo-caudal, justificando o maior número de lesoes nos segmentos corporais superiores16,17 (Tabela 10).

Quando tratamos de lesoes térmicas e sua evoluçao, podemos considerar dois fatos muito importantes: (1) a gravidade da lesao varia conforme o tempo de exposiçao e a intensidade da taxa de transferência de energia para o tecido, e é mais significativa na porçao superficial6; e (2) a pele encontra-se em constante renovaçao, a partir da profundidade seguida pela migraçao celular para porçoes superficiais. Como resultado, nas lesoes térmicas pouco profundas, com anexos dérmicos preservados, há maior possibilidade de reepitelizaçao espontânea, observada em torno do final da segunda semana de evoluçao.

A categorizaçao da profundidade da queimadura é complicada pelo processo chamado progressao vertical, que acarreta mudança na categoria diagnóstica6. Este processo nao foi completamente elucidado, mas vários autores o atribuem à patogênese da lesao térmica: por meio de interleucinas, dano oxidativo e comprometimento da perfusao local, a zona de estase sofreria um processo de degeneraçao, com aumento da extensao vertical do dano4,6. Esses mecanismos explicam as principais características clínicas observadas nas queimaduras de espessura parcial: sensibilidade tátil - pela preservaçao de nociceptores -; umidade; retorno rápido do preenchimento capilar e coloraçao rósea - pela presença de plexo vascular dérmico com permeabilidade aumentada. Já as características peculiares às lesoes de espessura total sao decorrentes da destruiçao de receptores para dor e da coagulaçao do plexo vascular na derme.

Neste estudo, todos os critérios clínicos da área queimada quando analisados individualmente apresentaram valores preditivos positivos superiores a 69% para o diagnóstico de queimaduras de espessura parcial e o critério clínico que apresentou o melhor índice foi a coloraçao (Tabela 13).

Por outro lado, a presença de umidade obteve, individualmente, o menor índice de acerto para o diagnóstico da queimadura (62,90%). Ou seja, se a presença de umidade é bom parâmetro para predizer reepitelizaçao, sugere-se que sua ausência nao é bom parâmetro para o diagnóstico de lesoes de espessura total.

O critério clínico com maior sensibilidade para diagnosticar queimaduras de espessura parcial foi a presença de sensibilidade dolorosa na área lesada (Tabela 14). Porém, deve-se levar em conta a subjetividade deste critério, pois se trata de estudo com crianças, em geral sensibilizados pelo trauma e inseridos num ambiente completamente estranho. Porém, esse foi também o critério que apresentou a menor especificidade (Tabela 15) no diagnóstico de queimaduras de espessura parcial. Na prática isso significa que, isoladamente, um grande número de queimaduras de espessura total pode ser erroneamente diagnosticado como espessura parcial, postergando o tratamento em 14 dias.

Do grupo que evoluiu com alteraçao do diagnóstico inicial, 17,80% receberam diagnóstico inicial de queimadura de espessura parcial e, ao 14º dia de evoluçao, nao apresentaram reepitelizaçao, alterando o diagnóstico para queimadura de espessura total e necessitou de tratamento cirúrgico (Tabela 17). Apenas uma lesao recebeu o diagnóstico inicial de queimadura de espessura total e evoluiu com reepitelizaçao espontânea, ou seja, tratava-se de queimadura de espessura parcial, sem necessidade de tratamento cirúrgico.

Como resultado, a acurácia do diagnóstico realizado pela avaliaçao clínica das lesoes encontrada foi de 83,14% e encontra-se acima dos valores encontrados na literatura, que registram valores entre 50 e 65%8. É importante ressaltar que o centro onde foi realizada a pesquisa é referência para tratamento de queimados e que a acurácia do método clínico é dependente do médico e sua experiência.

A literatura recente mostra que o diagnóstico e o tratamento adequados instituídos precocemente diminuem a morbi-mortalidade, reduzem gastos e podem impedir a progressao vertical da lesao14. Queimadura de espessura parcial tratada como espessura total resulta em aumento nos custos e gera sofrimento físico e psicológico, enquanto lesoes de espessura total tratadas como espessura parcial provocam aumento da morbi-mortalidade e do tempo de internaçao. Dessa forma, levando-se em conta o índice de acerto em relaçao ao desfecho, os resultados apresentados neste estudo parecem justificar a utilizaçao do método clínico na Unidade de Queimados do HIJG para diagnóstico da profundidade das lesoes térmicas.


REFERENCIAS

1. Mariani U. Queimaduras. In: Marcondes E, ed. Pediatria básica. 8ª ed. Sao Paulo:Sarvier;1991. p.866-70.

2. Gomes DR, Serra MC, Macieira Jr. L. Condutas atuais em queimaduras. Rio de Janeiro:Revinter;2001. p.102-5.

3. Paladini L. Análise de 1003 crianças internadas com queimaduras internadas no Hospital Infantil Joana de Gusmao - Florianópolis - SC [Trabalho de conclusao de curso]. Florianópolis:Universidade Federal de Santa Catarina, Curso de Medicina;2006.

4. Jackson DM. The diagnosis of the depth of burning. Br J Surg. 1953;40(164):588-96.

5. Sociedade Brasileira de Queimaduras. Disponível em: http://www.sbqueimaduras.com.br Acesso em 28/10/2008

6. Singh V, Devgan L, Bhat S, Milner SM. The pathogenesis of burn wound conversion. Ann Plast Surg. 2007;59(1):109-15.

7. Devgan L, Bhat S, Aylward S, Spence RJ. Modalities for the assessment of burn wound depth. J Burns Wounds. 2006;5:e2.

8. Pape SA, Skouras CA, Byrne PO. An audit of the use of laser Doppler imaging (LDI) in the assessment of burns of intermediate depth. Burns. 2001;27(3):233-9.

9. Monstrey S, Hoeksema H, Verbelen J, Pirayesh A, Blondeel P. Assessment of burn depth and burn wound healing potential. Burns. 2008;34(6):761-9.

10. Bombaro KM, Engrav LH, Carrougher GJ, Wiechman SA, Faucher L, Costa BA, et al. What is the prevalence of hypertrophic scarring following burns? Burns. 2003;29(4):299-302.

11. Cubison TC, Pape SA, Parkhouse N. Evidence for the link between healing time and the development of hypertrophic scars (HTS) in paediatric burns due to scald injury. Burns. 2006;32(8):992-9.

12. Lund CC, Browder NC. The estimation of areas of burns. Surg Gynec Obst. 1944;79:352-8.

13. Leonardi DF, Chem RC, Furlian R. Avaliaçao histológica de queimaduras de profundidade indeterminada como fator preditivo do tempo de cicatrizaçao. ACM Arq Catarin Med. 2005;34(1):47-51.

14. Still JM Jr., Law EJ. Primary excision of the burn wound. Clin Plast Surg. 2000;27(1):23-47, v-vi.

15. Hackenschmidt A. Burn trauma priorities for a patient with 80% total body surface area burns. J Emerg Nurs. 2007;33(4):405-8.

16. O'Toole P, Callender O, O'Hare B, Walsh S, Orr D, Fogarty E. Epidemiology of major paediatric trauma. Ir Med J. 2008;101(8):251-3.

17. Kai-Yang L, Zhao-Fan X, Luo-Man Z, Yi-Tao J, Tao T, Wei W, et al. Epidemiology of pediatric burns requiring hospitalization in China: a literature review of retrospective studies. Pediatrics. 2008;122(1):132-42.










1. Acadêmica do curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.
2. Médico formado pela Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.
3. Cirurgiao Pediatra do Hospital Infantil Joana de Gusmao; Professor do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.

Correspondência:
Aline Pallaoro Garcia
Av. Eng. Max de Souza, 1327 - Coqueiros
Florianópolis, SC, Brasil - CEP 88080-000
E-mail: aline.pallaorogarcia@gmail.com

Artigo recebido: 11/3/2011
Artigo aceito: 30/5/2011

© 2024 Todos os Direitos Reservados