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Artigo Original

Influência da cicatrização e amplitude de movimento na qualidade de vida de pacientes queimados em acompanhamento ambulatorial

Influence of wound healing and range of motion in the quality of life of burned patients in ambulatory follow up

Iasmin Borges Fraga1; Lucieli Trevizol de-Oliveira2; Luiz Erostildes Aver3; Vanessa Giendruczak da-Silva4

RESUMO

OBJETIVO: Avaliar a influência da cicatrizaçao e amplitude de movimento na qualidade de vida de pacientes queimados em acompanhamento ambulatorial.
MÉTODO: Estudo transversal realizado no Hospital de Pronto Socorro-Porto Alegre. Instrumentos avaliativos: escala de cicatrizaçao de Vancouver, goniometria ativa e questionário Burn Specific Health Scale Revised.
RESULTADOS: Amostra composta por 15 participantes, sendo 53,3% homens, e a média de idade foi 46,47±14,02 anos. Em relaçao à cicatriz, houve prevalência de cicatrizes hiperpigmentadas (n=11), maleáveis (n=6), deformadas (n=5) e firmes (n=5), com prevalência de hiperpigmentaçao nos fototipos cutâneos II (n=4) e III (n=4). Na variável amplitude de movimento articular, 93,3% apresentou limitaçao. A articulaçao mais acometida foi o punho (33,30%) e 86,70% das queimaduras eram bilaterais, com prevalência de limitaçao para movimentos de flexao e extensao (66,70%) das articulaçoes testadas. No questionário, o subgrupo "afeto e imagem corporal" apresentou pior escore. "Afeto e imagem corporal" teve associaçao significativa com os subgrupos "tratamento" e "relaçoes interpessoais" (p<0,05), e "sensibilidade da pele" teve associaçao significativa com o subgrupo "trabalho" (p<0,01).
CONCLUSOES: Alteraçoes cicatriciais/estéticas e prejuízo funcional p equeno foram encontrados, podendo ser associados à reduçao da qualidade de vida, prejudicada principalmente nos aspectos de autoimagem e sensibilidade da pele, advindos da cicatrizaçao. A associaçao destes fatores traz dificuldade no retorno ao trabalho e atividades de vida diária, gerando custos e isolamento social.

Palavras-chave: Queimaduras. Cicatrização. Amplitude de Movimento Articular. Fisioterapia. Qualidade de Vida.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To assess the influence of healing and range of motion on the quality of life of burned patients in outpatient care.
METHODS: Cross-sectional study carried out at Hospital de Pronto Socorro-Porto Alegre. evaluation instruments: Vancouver Scar Scale, active goniometer and questionnaire Burn Specific Health Scale Revised.
RESULTS: Sample composed of 15 participants, 53.3% men and the mean age 46.47±14.02 years. Regarding the scar, there was a prevalence of hyperpigmented scars (n=11), flexible (n=6) deformed (n=5) and firm (n=5), with a prevalence of hyperpigmentation in skin phototypes II (n=4) and III (n=4). In the variable range of motion, 93.3% had limitation. The most affected joint was the handle (33.30%) and 86.70% of the burns were bilateral, with a prevalence for limiting flexion and extension movements (66.70%) of the tested joints. Considering the questionnaire, subgroup "affection and body image" had a worse score. "Affect and body image" was significantly associated with subgroups "treatment" and "Interpersonal Relations" (p<0.05), and "sensitive skin" was significantly associated with the subgroup "work" (p<0.01).
CONCLUSIONS: Scar/aesthetic changes and small functional impairment have been found, and may be associated to a reduction in the quality of life, which is mainly impaired in the autoimaging and sensitivity aspects of the skin, resulting from scarring. The association of these factors brings difficulty in returning to work and activities of daily living, generating costs and social isolation.

Keywords: Burns. Wound Healing. Range of Motion, Articular. Physical Therapy Specialty. Quality of Life.

INTRODUÇAO

A queimadura pode ser compreendida como um trauma de origem térmica, elétrica, química ou radioativa capaz de provocar lesoes aos tecidos de revestimento do corpo, comprometendo a inteireza capilar e vascular e destruindo a integridade da pele, considerada a primeira linha de defesa do corpo humano. Esta alteraçao leva à diminuiçao da capacidade funcional e aeróbica, contraturas e cicatrizes hipertróficas, dentre outros fatores que dificultam o retorno às atividades de vida diária usuais, com consequente afastamento do trabalho e reduçao da qualidade de vida1-3.

Segundo a Organizaçao Mundial da Saúde, anualmente ocorrem aproximadamente 180.000 mortes no mundo por queimaduras, a maioria em países de baixa e média renda devido à escassez em estratégias de prevençao1. Conforme dados do governo do Brasil, publicados no ano de 2017, estima-se que ocorrem em nosso país aproximadamente 1 milhao de acidentes com queimaduras por ano4. Deste modo, as queimaduras constituem um grave problema de saúde pública e devem ser desenvolvidas pesquisas na área, visto o grande número de pessoas que atingem e elevados valores gastos necessários com o tratamento e período de hospitalizaçao aos quais estes indivíduos estao sujeitos, colocando as queimaduras entre os acidentes nao letais de maior custo5-7.

Ao avaliarmos pacientes queimados durante seu processo de recuperaçao, passamos a ter uma ampla compreensao das limitaçoes funcionais que surgem em consequência à queimadura, fornecendo assistência adequada. O fisioterapeuta é um profissional capaz de atuar em todos os graus destas lesoes, com diferentes recursos que auxiliam e potencializam a cicatrizaçao da ferida, evitando complicaçoes e contribuindo com uma recuperaçao eficiente, reduzindo as sequelas em repercussao à lesao, que envolvem alteraçoes metabólicas que podem perdurar por até dois anos após o acidente8.

Na última década, estudos vêm abordando a importância da fisioterapia na recuperaçao, funcionalidade e qualidade de vida de pacientes queimados9,10. Contudo, há na literatura ainda carência da associaçao destes e demais fatores no processo de cicatrizaçao de pessoas com queimaduras. As sequelas motoras costumam ser estudas isoladamente, nao encontrando-se estudos que as associam ao trauma psicológico envolvido e consequente reduçao da qualidade de vida2,3,6,8,10.

Sendo assim, estudos que abordam a relaçao da influência dos fatores motores com a qualidade de vida sao escassos, de modo que há necessidade de realizar pesquisas que salientem a importância do tratamento multidisciplinar para o paciente queimado. Visto isso, no intuito de contribuir com a comunidade acadêmica e científica, principalmente aos fisioterapeutas que trabalham ou pretendem trabalhar na área, este estudo tem como objetivo avaliar a influência da cicatrizaçao e amplitude de movimento na qualidade de vida de pacientes queimados em acompanhamento ambulatorial.


MÉTODO

Trata-se de um estudo transversal, que integra as abordagens quantitativa e qualitativa, e foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa do Centro Universitário Metodista-IPA (parecer 2.423.212) e da Secretária Municipal de Saúde de Porto Alegre-SMSPA (parecer 2.646.810). Os participantes da pesquisa foram previamente informados sobre a coleta de dados e assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e Termo de Uso de Imagem antes de iniciar o estudo.

Participaram do estudo 15 pacientes, conforme proposto pelo cálculo amostral prévio, de ambos os sexos atendidos pela equipe médica de cirurgia plástica do ambulatório de queimados do Hospital de Pronto Socorro-Porto Alegre (HPS), Porto Alegre, RS. Os dados foram coletados durante o primeiro semestre de 2018, e incluídos na pesquisa maiores de 18 anos com profundidade corporal queimada mínima de 2° grau. Aqueles que nao atendessem aos critérios de inclusao, grandes queimados, com queimaduras de genitálias, diminuiçao da cogniçao, diabéticos ou portadores de outras doenças metabólicas e que precisaram realizar reintervençao cirúrgica no local da queimadura, foram excluídos do estudo.

O contato com os participantes ocorreu durante a consulta no ambulatório de queimados do HPS, no retorno pós-alta hospitalar. Estes eram abordados pelo avaliador, que introduzia de forma clara e simples o estudo, e convidados a participar da pesquisa, de forma voluntária. Após, era analisado se o participante atendia aos critérios de inclusao/exclusao e, se sim, realizada anamnese e em seguida avaliaçao da cicatrizaçao, fototipo cutâneo, amplitude de movimento ativa e qualidade de vida. Todos os instrumentos avaliativos, exceto o questionário de qualidade de vida, eram preenchidos pelo examinador. Neste estudo, todos os participantes abordados puderam ser inclusos na pesquisa. O encontro era realizado em local disponibilizado pelo hospital, buscando um ambiente onde o avaliado pudesse sentir-se confortável, durava em torno de 30 minutos, estando presentes avaliado e avaliador.

Parâmetros avaliados

Anamnese


Uma ficha de anamnese foi elaborada para descriçao amostral, contendo: tipo de acidente, tempo de lesao/internaçao hospitalar, uso ou nao de malha compressiva/órtese e se havia recebido ou nao acompanhamento fisioterapêutico durante internaçao. As respostas foram gravadas e posteriormente digitadas pelo avaliador.

Goniometria

Para goniometria, foi realizada pelo avaliador utilizando um goniômetro padrao de 20 centímetros de comprimento. A avaliaçao da amplitude de movimento foi conduzida por meio do teste realizado de forma ativa, executado com o paciente em ortostase ou sedestaçao a depender do local mensurado, preferencialmente bilateralmente. As articulaçoes testadas foram cervical, cotovelo, punho, metacarpofalangeana, joelho e tornozelo, pois eram as articulaçoes nas quais os participantes apresentaram queimaduras. Quando permitido pelo avaliado, foram realizadas fotos dos locais queimados.

Escala de Cicatrizaçao de Vancouver

Para caracterizaçao da cicatriz, foi utilizada a escala de cicatrizaçao de Vancouver, preenchida pelo avaliador e aborda pigmentaçao, vascularizaçao, flexibilidade e altura da cicatriz, com um escore final que varia de 0 a 13 pontos, sendo que quanto menor o resultado melhor o estado da cicatriz11.

Classificaçao de Fitzpatrick

A classificaçao do fototipo cutâneo foi definida segundo a classificaçao de Fitzpatrick, que divide a pele em seis fototipos cutâneos levando em conta a dose de eritema mínimo, sendo que quanto menor o fototipo cutâneo maior sensibilidade ao Sol12. Para realizar a avaliaçao, foi necessário o avaliador questionar o participante quanto à reaçao da sua pele quando exposta ao Sol, como por exemplo quando vai à praia.

Burn Specific Health Scale Revised

O preenchimento do questionário de qualidade de vida Burn Specific Health Scale Revised (BSHS-R), traduzido e adaptado para língua portuguesa, foi aplicado ao avaliado, o qual deveria ler e responder sozinho as questoes, salvo quando houvesse dúvidas, as quais eram esclarecidas pelo examinador. Quando solicitado pelo avaliado, devido à dificuldade de compreensao, o examinador ou acompanhante leu e explicou o questionário ao participante. O BSHS-R é um questionário composto por 31 itens divididos em seis subgrupos que avaliam habilidades para funçoes simples, sensibilidade da pele, tratamento, trabalho, afeto e imagem corporal e relaçoes interpessoais, indo de 31 a 155 pontos, quanto maior a pontuaçao pior o estado de saúde13.

Análise estatística

O cálculo das análises descritivas foi realizado com o software Statistical Package for Social Science (SPSS), versao 19.0. Para correlaçao dos subgrupos do questionário BSHS-R, utilizou-se teste de Pearson, adotando nível de significância p<0,05. Os dados categóricos foram apresentados com frequência e porcentagem; dados paramétricos com média e desvio padrao.


RESULTADOS

Participaram do estudo 15 pessoas, sendo 7 mulheres (46,7%) e 8 homens (53,3%). A média de idade foi de 43,71±12,04 anos para mulheres e 48,88±15,96 para homens. Do total, apenas 20,0% eram moradores de Porto Alegre; os demais eram da regiao metropolitana (66,67%) ou outro estado (13,33%). Quanto à causa, grau e extensao da lesao, a maioria das queimaduras ocorreu devido a acidentes com eletricidade (n = 6), com prevalência de profundidade de 3° grau (n=11) e extensao menor que 20% (n=6) e maior que 40% (n=6). Sobre uso de órtese, apenas 13,30% da amostra utilizou; nenhum participante usou malha compressiva.

A maioria dos participantes tinha um período de alta hospitalar de até dois meses (80,0%), sendo que apenas uma pessoa nao havia precisado de internaçao hospitalar. Dos 14 participantes que internaram, 13 receberam tratamento fisioterapêutico durante o período de internaçao. Sobre o atendimento da equipe de fisioterapia, relataram que perceberam ajuda principalmente no "controle da dor, movimentar e caminhar".

Grande parcela dos participantes informou que nao havia dado sequência ao tratamento fisioterapêutico após a alta hospitalar, por motivos como: nao encontrar um serviço adequado, demora no atendimento pelo Sistema Unico de Saúde (SUS) e/ou nao ter como custear atendimento particular. Todos avaliados informaram ter recebido recomendaçoes no momento da alta, tais como exercícios ativos e alongamentos que poderiam ser realizados em casa, e que seguiam fazendo.

Na Tabela 1 podemos observar o estado de cicatrizaçao em relaçao ao sexo e ao tempo de lesao, que demonstram um dos dados mais relevantes de nosso estudo. Os fototipos cutâneos mais prevalentes na amostra foram o II (33,30%) e IV (33,30%), conforme a classificaçao de Fitzpatrick, sendo que os fototipos cutâneos II (n=4) e III (n=4) foram os que mais hiperpigmentaram, conforme a relaçao da escala de cicatrizaçao de Vancouver e a classificaçao de Fitzpatrick, sendo este outro achado relevante da pesquisa.




A Tabela 2 demonstra a qualidade de vida da amostra, segundo o questionário BSHS-R. A Tabela 3 demonstra a associaçao entre os subgrupos do questionário BSHS-R, nos quais o estudo que empreendemos encontrou resultados relevantes. Nesta tabela, pode-se observar que o subgrupo "afeto e imagem corporal" teve associaçao positiva estatisticamente significativa com os subgrupos "tratamento" (r=0,557, p<0,05) e "relaçoes interpessoais" (r=0,528, p<0,05), enquanto o subgrupo "sensibilidade da pele" teve associaçao positiva estatisticamente significativa com o subgrupo "trabalho" (r= 0,654, p<0,01).






Quanto às articulaçoes acometidas pela queimadura, temos punho (33,3%), cervical (13,3%) e joelho (13,3%) como as mais prevalentes. Dos movimentos testados, flexao e extensao foram os mais prejudicados (66,7%), sendo a queimadura frequentemente bilateral (86,7%).


DISCUSSAO

Os principais achados desta pesquisa sugerem que, em períodos maiores de lesao, há presença de uma cicatrizaçao hiperpigmentada e de flexibilidade maleável e/ou deformaçao da cicatriz, ou seja, fatores inestéticos e motores que podem influenciar na funçao dos segmentos acometidos. A amplitude de movimento, por sua vez, estava limitada em menor ou maior grau em grande parcela da amostra, porém os participantes se mantinham funcionais e conseguiam desempenhar suas atividades de vida diária, com pequena dificuldade apenas, o que pode ser considerado inesperado.

Estudos já abordam a avaliaçao da amplitude de movimento em pacientes queimados, e relacionam um déficit maior a aderências cicatriciais10. O fato da amostra nao apresentar contraturas pode ter sido uma fator positivo para que, mesmo com a presença de uma limitaçao articular, os participantes se encontrassem funcionais. A qualidade de vida estava prejudicada, principalmente quanto à autoimagem, devido aos fatores inestéticos advindos da cicatrizaçao e sensibilidade da pele, que pode estar hipersensível após uma lesao como a de uma queimadura.

Quanto à escala de cicatrizaçao de Vancouver e uma cicatriz maleável e/ou deformada, uma meta-análise publicada em 2017 avaliou 10 artigos e encontrou prevalência de contraturas no momento da alta hospitalar (54%), que diminuía com o passar do tempo2. Este dado corrobora com os achados deste estudo, pois nenhum paciente apresentou contraturas, sendo que 2 inclusive tinham cicatrizes maleáveis.

Um estudo empreendido por Oosterwijk et al.2 indicou que as contraturas ocorriam principalmente em queimaduras profundas e/ou tratadas cirurgicamente. Este achado vai contra os resultados encontrados nesta pesquisa, pois apesar de grande parcela da amostra ter enxertia prévia nao apresentava contraturas, sugerindo que nossos dados apontam uma novidade com base em estudos realizados anteriormente. Porém, o fato de nao haver presença de contraturas pode ser associado ao tempo maior de lesao, pois estudos já demonstram que a prevalência destas sequelas motoras sao menores em períodos mais longos2.

Um estudo recente encontrou que a terapia de compressao com pressao de 20-25mmHg reduz a espessura da cicatriz, através do realinhamento de fibras de colágeno e reduçao do desenvolvimento de estrias. Porém, acerca da flexibilidade, vascularizaçao e pigmentaçao nao foram encontradas diferenças estatísticas14. O mesmo estudo ainda destaca que pressoes maiores de 15mmHg já seriam capazes de gerar cicatrizes mais finas, porém quando ultrapassa-se o valor de 40mmHg danos podem ocorrer, como, por exemplo, parestesia. Além disso, os estudos avaliados concordaram de forma unânime que os pacientes precisam usar a malha compressiva durante 14-23 horas por dia para efeito satisfatório14. No estudo que empreendemos nenhum participante havia utilizado malha compressiva, de modo que nao podemos associar as diferenças cicatriciais a este fato.

Sobre o aspecto hiperpigmentaçao, estudos relatam que a estimulaçao dos melanócitos por fatores internos ou externos leva à produçao excessiva de melanina epidérmica/dérmica, que se acumula em alguns locais e nao é distribuída uniformemente na superfície da pele, originando manchas hiperpigmentadas desagradáveis e inestéticas15. A cor da pele nao depende apenas da quantidade de melanina, mas também de fatores como concentraçao de hemoglobina nos eritrócitos e saturaçao de oxigênio no sangue, podendo explicar porque cada indivíduo e cada área do corpo pode pigmentar de uma forma diferente16.

Com base na classificaçao de Fitzpatrick para fototipo cutâneo, os mais prevalentes em nossos resultados foram II e IV, sendo que os fototipos cutâneos II e III foram os que mais hiperpigmentaram. Um estudo publicado em 2016 destaca que a pele asiática é caracterizada pelo aumento da proliferaçao de fibroblastos e colágeno, resultando num prolongamento do eritema quando comparado à pele caucasiana. Como consequência, as peles com fototipo cutâneo maiores levariam maior tempo para maturar a cicatriz14, o que nao vai de encontro aos resultados do estudo que empreendemos, já que os fototipos cutâneos mais baixos e sensíveis foram aqueles que mais hiperpigmentaram, sugerindo um dado novo, no qual em lesoes extensas como queimaduras isto poderia se comportar de forma diferente, e por isso a pigmentaçao da pele queimada advinda do processo de cicatrizaçao necessita ser mais estudada.

O instrumento utilizado para avaliar a amplitude de movimento articular, o goniômetro, nao é capaz de capturar uma imagem completa do paciente, segundo um estudo publicado por Korp et al.17. Apesar disso, foi escolhido para avaliaçao por ser um instrumento de baixo custo, de fácil acesso e utilizaçao. Com base na avaliaçao pela goniometria, grande parcela da amostra apresentou limitaçoes de movimento, e, segundo sugeriu o estudo citado acima, isto poderia estar relacionado à cicatrizaçao podendo vir acompanhada de aderências17.

Porém, este dado nao se aplica a nossos achados, pois, apesar de haver limitaçoes dos segmentos articulares, os participantes mantinham-se funcionais, ou seja, tinham amplitude necessária para realizar suas atividades de vida diária18. Entretanto, nenhum avaliado apresentou contraturas, e este pode ser um fator positivo para terem uma melhor funçao. A ADM normal funcional, ainda, é considerada como o movimento máximo exigido por uma articulaçao sem limitaçoes impostas durante a execuçao de tarefas diárias17. A funcionalidade, segundo estudos relatam, deveria abordar também a qualidade de desempenho, além de nao depender exclusivamente da amplitude de movimento completa, mas também de fatores como força, equilíbrio, velocidade, resistência e destreza em realizar atividades especificas18.

Os resultados do questionário BSHS-R sugerem que a qualidade de vida estava prejudicada, apresentando um escore total de 79±20,53, sendo que "afeto e imagem corporal" (18,8±6,44), "sensibilidade da pele" (17,5±5,48) e "trabalho" (13,7±4,83) foram os subgrupos com piores pontuaçoes. Um estudo publicado em 2018 avaliou qualidade de vida de 240 participantes. Um dos instrumentos utilizados para tal foi o questionário BSHS-R, em que "afeto e imagem corporal" apresentou um escore total de 89, sugerindo que este subgrupo estaria prejudicado nestes pacientes19. Outro estudo publicado em 2016, realizado com 71 participantes, encontrou resultados semelhantes aos nossos. Os mesmos subgrupos foram mais afetados, inclusive com um escore total dos subgrupos de 76,26, ou seja, muito próximo ao que foi encontrado nesta pesquisa20.

Quando os participantes desta pesquisa eram questionados sobre as principais limitaçoes impostas pelas queimaduras, relatavam "dificuldade em tomar banho, vestir-se, comer, caminhar, dirigir", porém em graus pequenos, o que se prova com o escore do subgrupo "habilidades para funçoes simples" do questionário BSHS-R, que aborda temas como estes e nao ficou entre as piores pontuaçoes. Porém, estudos demonstram que queixas como estas sao comuns nesta populaçao, em maior ou menor grau, e que a extensao da queimadura e sua localizaçao podem influenciar18. Além disso, expressoes como "perdi minha liberdade" e "me sinto incapaz" eram frequentes no diálogo.

Nao poder se expor ao Sol e trabalhar eram dois fatores que causavam grande incômodo aos participantes, que por vezes relatavam que se sentiam deprimidos e solitários por terem de permanecer grande parte do dia em casa. Esses relatos vao de encontro aos subgrupos "sensibilidade da pele" e "trabalho", que estavam prejudicados na avaliaçao da qualidade de vida pelo questionário BSHSR. Ainda, todos participantes expressaram a vontade de retornar às atividades de vida diária e trabalho.

Relataram que nao acreditavam que funcionalmente a queimadura iria lhes atrapalhar no retorno ao mercado de trabalho, porém se sentiam incomodados com a estética, com olhares de pessoas ao andarem na rua. Isto vai de encontro ao subgrupo "afeto e imagem corporal", que teve uma pontuaçao alta, demonstrando um prejuízo nesta área. Os participantes que sentiam-se otimistas, relatavam expressoes como "sou grato (a) à Deus. Estou vivo (a)!", o que sugere que as crenças também influenciavam na reaçao perante as sequelas da queimadura.

O principal diferencial deste estudo se encontra na associaçao do estado da cicatrizaçao e amplitude de movimento articular à qualidade de vida, bem como na descriçao qualitativa do prejuízo emocional e físico presente nesta populaçao, relacionando os relatos dos participantes ao instrumento avaliativo BSHS-R. Algumas das limitaçoes da pesquisa se encontram no número amostral pequeno e na ausência de grupos para comparaçao intragrupos, sendo interessante que estudos busquem realizar também follow-ups mais longos.


CONCLUSAO

Com este estudo, pode-se observar que pacientes queimados apresentam alteraçoes cicatriciais, que geram preocupaçoes estéticas e limitaçoes de movimento, que podem ser percebidas em maior ou menor grau. Estes e demais fatores, como trauma emocional ao qual sao expostos, influenciam negativamente na qualidade de vida desta populaçao, que acaba precisando afastar-se de suas atividades diárias. Isto gera altos custos com tratamento, períodos de hospitalizaçao e afastamento do trabalho, tornando as queimaduras um problema de saúde pública grave que precisa ser tratado de forma concisa. Isso salienta a importância da avaliaçao e do acompanhamento fisioterapêutico no âmbito ambulatorial, pois este tratamento é capaz de auxiliar no controle e prevençao de sequelas. Sugere-se que continuem a ser realizadas pesquisas na área, podendo avaliar a funcionalidade de forma mais ampla e específica, num grupo maior.


AGRADECIMENTO

Agradecemos imensamente a contribuiçao da equipe de fisioterapia do Hospital de Pronto Socorro da cidade de Porto Alegre, principalmente ao fisioterapeuta Éder Kröeff Cardoso, e a equipe médica de cirurgia plástica, em especial o Dr. Pablo Pase, que nos recebeu tao calorosamente. Gratidao aos participantes que aceitaram compartilhar suas histórias conosco. Sem estas pessoas, nada seria possível.


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Recebido em 25 de Dezembro de 2018.
Aceito em 3 de Abril de 2019.

Local de realização do trabalho: Centro Universitário Metodista (IPA), Porto Alegre, RS, Brasil.

Conflito de interesses: Os autores declaram não haver.


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