2090
Visualizações
Acesso aberto Revisado por pares
Artigo Especial

Algoritmo de tratamento cirúrgico do paciente com sequela de queimadura

Surgical treatment algorithm of patient with burn sequelae

Luiz Philipe Molina Vana1; Carlos Fontana1; Marcus Castro Ferreira2

RESUMO

O presente estudo foi realizado no ambulatório de sequelas de queimaduras do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de Sao Paulo e propoe um algoritmo de tratamento de sequelas de queimaduras que facilitem o raciocínio e, principalmente, seja estabelecida uma lógica de atendimento baseado em evidências. O ambulatório consta com o seguimento de 640 pacientes, que têm sido tratados com este algoritmo de atendimento.

Palavras-chave: Queimaduras/complicações. Queimaduras/cirurgia. Algoritmos.

ABSTRACT

The present paper was developed at the Clinics Hospital of University of Sao Paulo and propose and algorithm to treat burn sequelae that facilitates the thinking and, specially, been established a logical way to decide the treatment of burn sequelae. Six hundred forty patients are been under treatment and they used to developed the algorithm.

Keywords: Burns/complications. Burns/surgery. Algorithms.

Apesar de ênfase crescente em prevençao, cerca de 2 milhoes de pessoas sofrem queimaduras todos os anos, 80.000 sao internadas em hospitais, e 6.500 perdem suas vidas a cada ano nos Estados Unidos. No Brasil ainda nao dispomos de um eficiente sistema de centralizaçao de dados, mas já possuímos informaçoes que demonstram a gravidade das queimaduras em nosso país1,2.

No Brasil estima-se que, no ano de 2001, aconteceram 1.000.000 de acidentes por queimaduras, sendo 150.000 causados por álcool líquido (15%) e 45.000 atingiram crianças de até 12 anos (30%)3.

A sobrevivência dos grandes queimados aumentou durante as últimas décadas. Nos anos 1950 e 1960, a sobrevivência de um queimado com 30% de área corpórea queimada (A.C.Q.) era pequena. Hoje, em alguns centros de excelência, as crianças sobrevivem a queimaduras que afetam mais que 90% da superfície corpórea, e os adultos jovens e de meia-idade com mais que 80% sobrevivem rotineiramente. Estas melhorias dramáticas vieram do reconhecimento dos mecanismos fisiopatológicos da destruiçao tecidual e da agressividade do tratamento cirúrgico com escarectomias precoces4,5.

Embora a natureza ameaçadora das grandes queimaduras seja enfatizada frequentemente, o impacto potencialmente devastador de queimaduras menores mal conduzidas nao deve ser negligenciado. Estas queimaduras raramente causam problemas hemodinâmicos, exceto nos idosos e nas lesoes inalatórias, porém podem causar morbidade persistente através da presença de sequelas estéticas e funcionais, pois as lesoes da derme reticular estao associadas a cicatrizes inestéticas, restritivas e hipertróficas6. Dentre os pacientes que sobrevivem a danos sérios, muitos sofrem inaptidao a longo prazo em decorrência das sequelas deixadas por tratamentos muitas vezes mal conduzidos. A falta de entendimento das bases biológicas das cicatrizes patológicas e sua efetiva profilaxia e tratamento sao alguns dos principais desafios atuais.

A cirurgia do paciente queimado é um dos momentos de maior vulnerabilidade às complicaçoes e causadora de um grande estresse ao organismo. Estes aspectos negativos nao devem ser impedimentos, pois um adequado planejamento e execuçao cirúrgica ajudam a minimizar estes problemas, além de diminuírem as sequelas estéticas e funcionais, facilitando a reinserçao do indivíduo na sociedade. No entanto, o que notamos em nosso dia a dia é que a incidência de sequelas de queimaduras é cada vez maior. Talvez em decorrência da sobrevida da fase aguda que vem aumentando nos últimos anos2,5,7.

Em um serviço acadêmico, com residência em Cirurgia Plástica, existe a necessidade de desenvolver um método de ensino dos conceitos e das condutas frente aos diferentes tipos de sequelas. Por esse motivo, desenvolvemos um algoritmo para facilitar o aprendizado e o raciocínio dos residentes e estagiários. É baseado nesse algoritmo que hoje introduzimos o ensino do tratamento das sequelas de queimaduras em nossa instituiçao.

O objetivo desse estudo é estabelecer um algoritmo de atendimento ao paciente com sequelas de queimaduras funcionais ou estéticas (Figura 1), que facilite o tratamento, bem como melhore os seus resultados.


Figura 1 - Algoritmo de atendimento ao paciente com sequelas de queimaduras funcionais ou estéticas.



TIPOS DE CIRURGIAS

A seguir, detalhamos os principais tipos de cirurgias utilizados na prática diária do tratamento das sequelas de queimaduras.

Ressecçao e sutura

É o procedimento mais simples que dispomos. É a simples ressecçao e sutura borda a borda da lesao. Nem sempre é possível realizar a ressecçao completa da lesao em etapa única, nestes casos realizamos ressecçoes parceladas2,8.

Expansor de pele

O expansor de pele constitui a única maneira de se retirar grandes cicatrizes e reduzi-las em pequenas. Traz grande satisfaçao aos pacientes, mas demanda enorme colaboraçao deles. Apesar de ser um procedimento simples, a escolha do expansor e a sua colocaçao apresentam uma curva de aprendizagem com alto índice de complicaçoes, especialmente deiscência da sutura após a sua colocaçao. Apesar da satisfaçao dos pacientes, raramente realiza-se mais de três expansoes sequenciais.

Retalho local

O retalho local é o método de eleiçao para tratamento de bridas e pequenas retraçoes. O retalho local mais utilizado é a plástica em "Z" com ângulo de 60o e as suas combinaçoes, entre elas as sequências de "Z" e duplo retalho em "Z" oposto. Simples de ser executado, pode ser realizado até mesmo em áreas queimadas, tomando-se o cuidado de se preservar ao máximo a irrigaçao dos retalhos por meio de descolamentos mínimos e sempre mais espessos. Deve-se lembrar que muitas vezes ao tratarmos uma brida causamos uma nova de menor intensidade, que deverá ser tratada em um segundo tempo2,8.

Matriz de regeneraçao dérmica

A matriz de regeneraçao dérmica, devido ao preço e à curva de aprendizado longa, nao deve ser considerada como primeira opçao. Apresenta grandes vantagens, especialmente quanto à sequela da área doadora do enxerto definitivo, mas apresenta desvantagens, como necessidade de dois procedimentos e tempo de internaçao prolongada. Atualmente, realizamos rotineiramente o curativo a vácuo sobre a matriz, como maneira de apressar a internaçao, melhorar o conforto e aumentar a integraçao da matriz no leito8,9.

Enxertias de pele

Um enxerto de pele é uma lâmina de pele de espessura parcial ou total, completamente separada de sua origem, e que depende do desenvolvimento de um suprimento sanguíneo e de um processo biológico dependente de mecanismos celulares e mediadores químicos para se estabelecer.

No tratamento de sequelas de queimaduras utilizamos sempre enxertos em lâminas. Esta técnica apresenta como principais vantagens: melhor resultado estético (textura e pigmentaçao); melhor resultado funcional; menor taxa de cicatrizes patológicas (cicatrizes hipertróficas e queloidianas); e menor quantidade de cicatrizes, apenas nas emendas. Na face, utilizamos sempre que disponível enxerto de couro cabeludo8,10-14.

O enxerto de pele pode ser classificado em relaçao à espessura como:

  • Fino - de 0 a 0,006 polegadas (0 a 0,1524 mm). Devido à quantidade pequena de derme, apresenta boa taxa de integraçao, porém grande fragilidade, raramente utilizamos no tratamento de sequelas. A sua taxa de retraçao nao permite alcançar resultados adequados.
  • Médio - de 0,007 a 0,015 polegadas (0,1778 a 0,381 mm). É o mais frequentemente utilizado em decorrência da facilidade de utilizaçao (para utilizar com enxerto expandido, malha, por exemplo), boa qualidade estética, funcional e resistência e boa qualidade da área doadora.
  • Espesso - mais espesso que 0,015 polegadas (0,381 mm). Apresenta excelente qualidade estética, funcional e resistência, porém a área doadora apresenta complicaçoes mais frequentes, como as cicatrizes hipertróficas, além de nao pode ser reutilizada. Devido a sua espessura, esse enxerto tem maior dificuldade de integraçao. Está indicado quando há necessidade de se ter uma cobertura com muita resistência ou grande qualidade estética, como na face.
  • Total - toda a espessura da derme. Por termos uma mínima quantidade de áreas doadoras (regiao inguinal, suprapúbica, retroauricular, face interna de braço, supraclavicular e palpebral em pessoas mais velhas), este tipo de enxerto fica restrito a pequenas áreas e locais específicos, como as pálpebras. Apresenta o melhor resultado possível, tanto estético como funcional, porém é o mais difícil de integrar em decorrência de sua espessura (Figura 2).



  • Figura 2 - Tipos de enxerto segundo a espessura.



    Outros tipos de cirurgias

  • Retalhos expandidos - em algumas situaçoes, os retalhos sao as melhores indicaçoes para a reconstruçao, como a reconstruçao das mamas. Entretanto, em muitas vezes, a área doadora nao é suficiente; neste tipo de situaçao, realizamos a combinaçao do retalho com a sua prévia expansao. Apesar de bastante trabalhoso, os resultados sao bons, seguros e consistentes. No entanto, requer curva de aprendizado tanto do retalho quanto do expansor2.
  • Retalhos microcirúrgicos - utilizado em casos extremos, quando nao resta mais nenhuma opçao de reconstruçao e a alteraçao funcional é importante. Os mais comumente utilizados sao o retalho lateral da coxa, o TRAM e o grande dorsal8,15-17.
  • Implante de cabelo - utilizado como primeira opçao na reconstruçao do supercílio. Apresenta resultados excelentes, como desvantagens apresenta a necessidade de se realizar duas ou três sessoes para ficar com aspecto cheio e natural e a necessidade de se cortar constantemente o pêlo, pois ao contrário do pêlo original do supercílio, o cabelo continua a crescer2,8.
  • Tratamento da área doadora - o adequado tratamento da área doadora tem como objetivo evitar um problema a mais ao paciente. Deve-se evitar dor, infecçao local e transformaçao da área doadora em uma ferida que precise ser enxertada. Após estudo realizado e publicado nesta revista18, utilizamos rotineiramente o filme de poliuretano em todas as áreas doadoras. Suas vantagens sao evidentes em relaçao a todos os procedimentos anteriores que utilizávamos. Desta maneira, nao temos mais problemas de dor, necessidade de troca de curativos, infecçao secundária, ou dificuldade com higiene pessoal (banho).



  • REFERENCIAS

    1. Saffle JR, Davis B, Williams P. Recent outcomes in the treatment of burn injury in the United States: a report from the American Burn Association Patient Registry. J Burn Care Rehabil. 1995;16(3 pt 1):219-32.

    2. Herndon D. Total burn care. 3rd ed. Saunders;2007.

    3. De Souza DA, Manco RA. Epidemiological data of patients hospitalized with burns and other traumas in some cities in the southeast of Brazil from 1991 to 1997. Burns. 2002;28(2):107-14.

    4. Arturson G. Pathophysiology of the burn wound and pharmacological treatment: the Rudi Hermans lecture,1995. Burns. 1996;22(4):255-74.

    5. Sheridan RL. Comprehensive treatment of burns. Curr Probl Surg. 2001;38(9):657-75.

    6. Deitch EA, Wheelahan TM, Rose MP, Clothier J, Cotter J. Hypertrophic burn scars: analysis of variables. J Trauma. 1983;23(10):895-8.

    7. Moss LS. Outpatient management of the burn patient. Crit Care Nurs Clin North Am. 2004;16(1):109-17.

    8. Achauer and Sood's. Burn surgery. Reconstruction and rehabilitation. Saunders;2006.

    9. Rennekampff HO, Kiessig V, Hansbrough JF. Current concepts in the development of cultured skin replacements. J Surg Res. 1996;62(2):288-95.

    10. White N, Hettiaratchy S, Papini RP. The choice of split-thickness skin graft donor site: patients' and surgeons' preferences. Plast Reconstr Surg. 2003;112(3):933-4.

    11. Papini R. Management of burn injuries of various depths. BMJ. 2004;329(7458):158-60.

    12. Lewis R, Lang PG Jr. Delayed full-thickness skin grafts revisited. Dermatol Surg. 2003;29(11):1113-7.

    13. Atiyeh BS, Ioannovich J, Al-Amm CA, El-Musa KA, Dham R. Improving scar quality: a prospective clinical study. Aesthetic Plast Surg. 2002;26(6):470-6.

    14. Ratner D. Skin grafting. Semin Cutan Med Surg. 2003;22(4):295-305.

    15. Stefanacci HA, Vandevender DK, Gamelli RL. The use of free tissue transfers in acute thermal and electrical extremity injuries. J Trauma. 2003;55(4):707-12.

    16. Ninkovic M, Moser-Rumer A, Ninkovic M, Spanio S, Rainer C, Gurunluoglu R. Anterior neck reconstruction with pre-expanded free groin and scapular flaps. Plast Reconstr Surg. 2004;113(1):61-8.

    17. Yongwei P, Jianing W, Junhui Z, Guanglei T, Wen T, Chun L. The abdominal flap using scarred skin in the treatment of postburn hand deformities of severe burn patients. J Hand Surg Am. 2004;29(2):209-15.

    18. Vana LPM. Revisao do tratamento de área doadora de enxerto de pele - revisao de literatura. Rev Bras Queimaduras. 2008;7(4):24-40.










    1. Médico Assistente da Divisao de Cirurgia Plástica e Queimaduras do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de Sao Paulo (FMUSP).
    2. Médico, Professor Titular da Disciplina de Cirurgia Plástica da FMUSP.

    Correspondência:
    Luiz Philipe Molina Vana
    Rua Batataes, 460 cjto 11 - Jardins
    Sao Paulo, SP, Brasil - CEP 01423-010
    E-mail: philipe@uol.com.br

    Recebido em: 28/1/2010
    Aceito em: 2/6/2010

    Trabalho realizado na Unidade de Queimaduras da Divisao de Cirurgia Plástica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de Sao Paulo (FMUSP), Sao Paulo, SP.

    © 2024 Todos os Direitos Reservados