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Relato de Caso

Alotransplante de pele como alternativa para o tratamento da queimadura dolorosa da criança

Allograft skin as an alternative for the treatment of the painful burn in children

Marcos Ricardo de Oliveira Jaeger1; Lydia Masako Ferreira2; Thiago Falcão3; Pedro Bins Ely4; Eduardo Chem5

RESUMO

Queimaduras de segundo grau sao especialmente dolorosas em crianças. A cada dia que passa, a pele queimada tende a cicatrizar, mas há momentos em que a área lesada fica pior devido a curativos inadequados ou à infecçao. A utilizaçao de substitutivos dérmicos deve ser considerada. Relatamos a utilizaçao de aloenxerto de pele como um substitutivo dérmico transitório, a fim de diminuir a dor e promover a reepitelizaçao em queimaduras dolorosas de segundo grau. A reduçao da dor foi completa após o uso do aloenxerto de pele. A criança obteve reepitelizaçao completa da área lesada, nao necessitando de internaçao e enxerto autólogo. Aloenxertos podem representar uma possibilidade de cobertura temporária para queimaduras dolorosas de segundo grau em crianças.

Palavras-chave: Queimaduras. Infecção. Dor.

ABSTRACT

Second-degree burns are especially painful in children. With each passing day, the burned skin tends to heal, but there are times when the injured area gets worst due to inadequate dressing or infection. The use of dermal substitutes must be considered. We report the use of skin allograft as a transitory dermal substitute in order to decrease pain and promote re-epithelialization in painful second-degree burns. The child got complete re-epithelialization of the injured area, not requiring hospitalization and skin grafts. The pain reduction was complete after using skin allograft. Allografts may represent a possibility of temporary coverage in painful second-degree burns in children.

Keywords: Burns. Infection. Pain.

INTRODUÇAO

O aloenxerto de pele obtido de doadores post-mortem exerce um papel importante nos pacientes com grandes queimaduras e estado crítico. Queimaduras de segundo grau podem nao representar uma ameaça imediata à vida, e a quebra da homeostase dos líquidos corporais - detectável na presença de grandes superfícies queimadas com grande perda de fluidos e eletrólitos através da ferida cutânea - pode até passar despercebida. Entretanto, sao queimaduras muito dolorosas - especialmente nas crianças - e tendem a se aprofundar com as trocas equivocadas de curativos aderidos à derme em estado de regeneraçao. Com a quebra da integridade da pele e da derme, o indivíduo fica mais vulnerável ao simples toque, calor e frio, e pode haver colonizaçao e infecçao por micro-organismos1,2.

Restabelecida a homeostasia dos líquidos corporais, a atençao fica entao toda voltada à ferida. A regeneraçao da pele machucada pode acontecer por meio da epitelizaçao dirigida - sem auxílio de enxertos de pele, mas valendo-se de substâncias de uso tópico que podem acelerar o tempo de cicatrizaçao e ao mesmo tempo bloquear o crescimento de micro-organismos patológicos. A regeneraçao também pode se dar com a utilizaçao de substitutivos sintéticos, pouco utilizados em nosso meio devido aos altos custos. Em queimaduras de segundo grau, normalmente nao se utilizam enxertos de pele, salvo em situaçoes especiais nas quais a queimadura profunda aparece em dobras de flexao e extensao, o que pode acarretar perda da funçao do membro acometido.

O aprofundamento da queimadura de segundo grau se constitui em um problema à parte: ainda que dolorosas ao simples toque, a insistência na troca frequente de curativos - em especial os aderidos à regiao da derme queimada - tem por vezes ocasionado a evoluçao da lesao para os tecidos mais profundos, podendo inclusive acometer toda a derme, atingindo o tecido celular subcutâneo. Ainda, curativos nao aderentes podem também fixar-se à regiao lesada, dificultando a própria regeneraçao dos tecidos. Nestes casos, a criança começa a sentir mais dor com o passar dos dias, e percebe-se com clareza que nao está ocorrendo diminuiçao da área de pele machucada, que normalmente ocorreria em um período de até duas semanas1,2.

Enxertos de pele para o tratamento das queimaduras costumam ser autólogos (do mesmo indivíduo). Em substituiçao a este tipo de enxertos, um número crescente de curativos e substitutivos cutâneos tem sido utilizados. Em indivíduos grande queimados, ou quando nao é possível a obtençao de enxertos de pele autóloga, os aloenxertos ou homoenxertos representam uma opçao segura para o tratamento nao definitivo da área queimada, o que diminui em muito a perda de fluidos corporais através da pele e a dor3-5. Esse tipo de substitutivo dérmico tem sido muito utilizado em muitos centros de queimados5-8.

Os aloenxertos para o tratamento das queimaduras de segundo grau poderiam regenerar mais facilmente a pele, devido à proteçao precoce, proteçao contra à desidrataçao e talvez devido a algum outro tipo de efeito similar ao do enxerto de pele oriundo do próprio indivíduo. O presente relato tem por objetivo demonstrar a utilizaçao do enxerto autólogo para o tratamento da dor e da ferida cutânea em uma criança que apresentava queimadura de segundo grau e que teve aprofundamento doloroso da área lesada nas semanas subsequentes ao trauma.


RELATO DO CASO

O Banco de Tecidos Humanos - Modalidade Pele - Dr. Roberto Correa Chem recebeu autorizaçao para o funcionamento conforme a resoluçao - RDC 220, de 27 de dezembro de 2006, é regulamentado pela Portaria 101 de 7 de março de 2007, e seu funcionamento dentro da irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre para o transplante de pele alógena segue a Portaria 128 de 22 de fevereiro de 2006.

Menino de 1 ano e 7 meses, vítima de queimadura por óleo quente na regiao torácica anterior. Pais obtiveram o primeiro atendimento no pronto-socorro, onde lhes foi orientado curativos domiciliares na rede pública em funçao da profundidade da queimadura - de segundo grau. Com a piora da dor após repetidos curativos, os pais buscaram outro atendimento no ambulatório de Cirurgia Plástica do Hospital da Criança Santo Antônio da Irmandade da Santa Casa de Porto Alegre - um mês após o acidente.

No exame físico, apresentava uma área cruenta transudativa, muito dolorosa e sensível ao toque, com formaçao de tecido de granulaçao em hemitórax esquerdo, medindo 105 cm2, o que abrangia também a área do complexo da aréola e da papila mamária. A criança apresentava-se em regular estado geral, chorosa e de aspecto desnutrido. Nao havia sinais de infecçao na regiao acometida. Após avaliaçao clínica, considerando os métodos disponíveis de cobertura da regiao afetada, decidiu-se optar pelo aloenxerto com o objetivo de reduzir as perdas decorrentes da transudaçao, o que poderia diminuir a dor dos curativos, além de nao acrescentar outra área cruenta como zona doadora.

A aposiçao das finas lâminas de aloenxerto foi realizada sob anestesia geral. A técnica é similar à aplicaçao do enxerto autólogo. O aloenxerto foi preparado conforme as orientaçoes do Banco de Pele, que inclui a lavagem com soro fisiológico a 0,9%, que visa homogeneizar a pele armazenada após o período de conservaçao. Houve integraçao completa do aloenxerto. A diminuiçao da dor foi imediata, sendo necessária apenas a utilizaçao de analgésicos comuns nos primeiros dias de pós-operatório.

Após 15 dias, houve o desprendimento das lâminas de aloenxerto de pele, período em que se observou o restabelecimento da criança, que já nao apresentava desconforto ao toque na regiao. Abaixo da regiao submetida à aposiçao dos aloenxertos, a reepitelizaçao estava quase completa (Figuras 1 a 10).


Figura 1 - Queimadura dolorosa de segundo grau, trinta dias de evoluçao.


Figura 2 - Observe a formaçao de tecido de granulaçao sem reepitelizaçao.


Figura 3 - Aspecto das lâminas de aloenxerto de pele em soluçao fisiológica.


Figura 4 - Lâmina de aloenxerto de pele sobre a regiao da queimadura.


Figura 5 - Pós-operatório. Houve rejeiçao das lâminas do aloenxerto.


Figura 6 - Reepitelizaçao completa após o tratamento.


Figura 7 - Outra criança: queimadura em superfície de extensao.


Figura 8 - Lâminas de aloenxerto de pele posicionadas.


Figura 9 - Desprendimento das lâminas de aloenxerto de pele.


Figura 10 - Aprofundamento da ferida onde havia apenas exposiçao da derme.



DISCUSSAO

As queimaduras sao a quarta causa de morte por lesao unidirecional nos Estados Unidos. Segundo dados da Organizaçao Mundial da Saúde, em 1998 ocorreram 282.000 mortes no mundo decorrentes de queimaduras, 96% em países em desenvolvimento. No Brasil, os dados sobre a incidência sobre queimaduras sao ainda limitados, se bem que nos últimos anos os relatórios têm melhorado muito. Queimaduras de pele parcial em crianças têm sido tratadas com curativos diários. Em instituiçoes especializadas, os curativos sao realizados em bacias, seguido da aplicaçao de cremes antimicrobianos. Dor e dificuldades de cicatrizaçao sao problemas comuns, além da deterioraçao do estado psicológico da criança.

Apesar da utilizaçao de cremes antibacterianos, muitas destas crianças ainda assim adquirem infecçao da área lesada, podendo até mesmo necessitar tratamento cirúrgico para o fechamento destas lesoes. Exposiçao diária das queimaduras de segundo grau ao ambiente durante a troca de curativos predispoe a criança à infecçao local, o que pode até mesmo converter a lesao de segundo grau em uma mais profunda de terceiro grau (aprofundamento da lesao).

Há um número crescente de substitutivos dérmicos, a fim de promover cobertura imediata da ferida quando pode nao haver área doadora disponível, evitando também a retraçao cicatricial da ferida1,9,10. O aspecto estético também seria melhor. Os aloenxertos oriundos de indivíduos post mortem - cadáveres frescos, de folhetos da bolsa amniótica e os xenoenxertos oriundos da pele porco e da ra3 merecem destaque na Tabela 1.

Baseados em alguns destes princípios: cobertura temporária, prevençao de infecçao, diminuiçao da dor, percebemos que a cobertura da ferida em um ambiente estéril - bloco cirúrgico - poderia manter um ambiente mais limpo para a reepitelizaçao, evitando até mesmo a necessidade - dolorosa - das trocas frequentes de curativos.

O aloenxerto de pele proporciona uma cobertura cutânea temporária que contribui na cicatrizaçao da ferida, podendo reduzir a dor e as chances de infecçao. Seus benefícios têm sido documentados em países como Alemanha, Holanda, Reino Unido e em alguns países em desenvolvimento2,7,11,12.

A rejeiçao após um período de duas a três semanas acontece porque o indivíduo - doador e receptor - sao geneticamente diferentes13. No presente relato, observamos que após o desprendimento do aloenxerto havia reepitelizaçao da área lesada de queimadura, mesmo na regiao onde já havia formaçao de tecido de granulaçao. O aloenxerto aplicado em ambiente hospitalar poderia oferecer vantagens na reepitelizaçao em crianças que enfrentam curativos domiciliares dolorosos.

Queimaduras de pele que atingem a espessura parcial da derme sao conhecidas por provocar muita dor, o que normalmente melhora conforme a regiao afetada cicatriza. Ansiedade é outro problema que dificulta o manejo domiciliar nestes casos. No presente relato, houve reduçao da dor imediatamente após a aposiçao do aloenxerto, o que permitiu o acompanhamento ambulatorial tao logo os pais se sentiam preparados. Mudanças de curativo sao evitadas, a menos que haja suspeita de infecçao.

A dificuldade de pele armazenada e a falta de doadores de tecido disponíveis ainda é um problema nos centros especializados em transplante de tecidos, o que pode dificultar a aplicaçao do método. O Banco de Pele Professor Doutor Roberto Corrêa Chem do Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre disponibiliza o alotransplante de pele preservada de doadores armazenando os tecidos em 85% de glicerol. É possível a remessa de tecidos para diversas outras regioes do país. No caso do paciente do presente relato, o aloenxerto fornecido pelo Banco de Pele dentro da própria instituiçao forneceu subsídios para o acompanhamento do caso clínico14.


REFERENCIAS

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4. Burd A, Chiu T. Allogenic skin in the treatment of burns. Clin Dermatol. 2005;23(4):376-87.

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7. Vloemans AF, Middelkoop E, Kreis RW. A historical appraisal of the use of cryopreserved and glycerol-preserved allograft skin in the treatment of partial thickness burns. Burns. 2002;28 Suppl 1:S16-20.

8. Moerman E, Middelkoop E, Mackie D, Groenevelt F. The temporary use of allograft for complicated wounds in plastic surgery. Burns. 2002;28 Suppl 1:S13-15.

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10. Costa LAL, Ferreira MT, Weissheimer L, Ruschel FF, Leonardi DF, Chem RC. Aloenxerto de pele um novo substituto dérmico? ACM Arq Catarin Med. 2007;36(supl.1):29-32.

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12. Blome-Eberwein S, Jester A, Kuentscher M, Raff T, Germann G, Pelzer M. Clinical practice of glycerol preserved allograft skin coverage. Burns. 2002;28 Suppl 1:S10-12.

13. Banks ND, Milner S. Persistence of human skin allograft in a burn patient without exogenous immunosuppression. Plast Reconstr Surg. 2008;121(4):230e-1e.

14. Silveira DP, Rech DL, Pretto Neto AS, Martins ALM, Ely PB, Chem EM. Banco de Pele de Porto Alegre: produtividade e perfil dos doadores. Rev Bras Cir Plást. 2013;28(supl):1-103.










1. Pós-doutorando do Programa de Pós- Graduaçao em Cirurgia Translacional da Universidade Federal de Sao Paulo (UNIFESP-EPM). Professor Substituto em Anatomia Humana da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, 2009- 2010) e Voluntário do Serviço de Cirurgia Plástica e Microcirurgia Reconstrutiva da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Porto Alegre, RS, Brasil
2. Professora Titular da Disciplina de Cirurgia Plástica da Universidade Federal de Sao Paulo (UNIFESP-EPM). Coordenadora na área Medicina III da Coordenaçao de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Pesquisadora 1A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Sao Paulo, SP, Brasil
3. Cirurgiao Plástico. Ex-médico residente do Serviço de Cirurgia Plástica e Microcirurgia Reconstrutiva da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, Porto Alegre, RS, Brasil
4. Professor e Regente da Disciplina de Cirurgia Plástica do Curso de Medicina da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Chefe do Serviço de Cirurgia Plástica da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (ISCMPA), Porto Alegre, RS, Brasil
5. Diretor do Banco de Pele Prof. Dr. Roberto Correa Chem da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Mestre em Medicina - Cirurgia Plástica Reconstrutiva e Microcirurgia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil

Correspondência:
Marcos Ricardo Jaeger
Instituto Novaplastia
Rua Mostardeiro 780 - 502
Porto Alegre, RS, Brasil - CEP: 90430-000
E-mail: marcosjaeger@hotmail.com

Artigo recebido: 16/3/2015
Artigo aceito: 20/4/2015
Nao há conflito de interesses

Local de realizaçao do trabalho: Hospital da Criança Santo Antônio da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, Porto Alegre, RS, Brasil.

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