900
Visualizações
Acesso aberto Revisado por pares
Relato de Caso

Enxerto de pele parcial para tratamento de sequela de queimadura cáustica em cavidade oral: relato de caso

Partial-thickness skin graft for treatment of sequelae of caustic burn in oral cavity: case report

Rafael Luis Sakai1; Fernando Márcio Matos Bezerra2; Alexandre Wada3; Débora Cristina Sanches Pinto3; Carlos Alberto Mattar3; Paulo Cezar Cavalcante de Almeida4; Leão Faiwichow5

RESUMO

INTRODUÇAO: As queimaduras estao entre as principais causas de morbimortalidade em nossa sociedade, com 2 milhoes de casos por ano e 2.500 óbitos no Brasil. Apesar de menos comuns, as queimaduras químicas sao mais graves, principalmente quando causadas por agentes alcalinos. A cavidade oral raramente é afetada, mas, quando ocorre, pode deixar sequelas incapacitantes e permanentes. A literatura apresenta várias opçoes de tratamento, incluído órteses, fisioterapia, enxertos de pele, retalhos de mucosa e promissores agentes químicos inibidores de fibrose.
RELATO DO CASO: Relato de queimadura cáustica grave em face de paciente jovem, com evoluçao aguda para estenose oral importante, no qual foram realizadas comissuroplastia e enxertia de pele parcial com tratamento das áreas cruentas da mucosa jugal e das comissuras.
CONCLUSAO: Foi alcançada evoluçao satisfatória com recuperaçao da funçao estomatognática.

Palavras-chave: Queimaduras químicas. Hidróxido de sódio. Face. Constrição patológica. Transplante de pele.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Burns are one of the main causes of morbidity and mortality in our society, occurring two million cases per year and 2,500 deaths in Brazil. Although less common, chemical burns are more serious, especially when caused by alkaline agents. The oral cavity is rarely affected, but when it happens, permanent and disabling sequelae may occur. The literature presents various treatment options, including bracing, physical therapy, total skin grafts, flaps of mucosa and promising chemical inhibitors to prevent fibrosis.
CASE REPORT: Case report of a severe caustic burn in the face in a young patient with acute progression to severe oral stenosis, which were performed commissuroplasties and partial skin graft as a treatment of the cruentae areas of the buccal mucosa and the commissures.
CONCLUSION: Satisfactory outcome with recovery of the stomatognathic function were achieved.

Keywords: Burns, chemical. Sodium hydroxide. Face. Constriction, pathologic. Skin transplantation.

As queimaduras estao entre as principais causas de morbimortalidade em nossa sociedade. No Brasil, anualmente, ocorrem cerca de 2 milhoes de casos novos, 35 mil internaçoes e até 2.500 óbitos, envolvendo indivíduos de todas as faixas etárias, em especial a populaçao economicamente ativa e as crianças1. Dados norte-americanos sugerem que 4% a 5% dos pacientes que procuram atendimento por queimaduras têm como agente causador substâncias químicas, sendo um quarto destas alcalinas2. As estatísticas brasileiras apontam as queimaduras químicas como responsáveis por 1% a 4% das queimaduras, com índice de letalidade próximo a 36%3.

As lesoes químicas sao menos comuns do que aquelas causadas por fogo, mas, em geral, mais graves e com potencial tóxico maior, seja local ou sistêmico4. Injúrias corrosivas do trato gastrointestinal superior por ácidos ou álcalis têm sido frequentemente reportadas na literatura médica, podendo ser acidentais ou intencionais. Geralmente, acometem o esôfago, o estômago e o duodeno, isoladamente ou em conjunto. As queimaduras cáusticas da cavidade oral, apesar de raras, podem determinar sequelas limitantes, como: microstomia, vestíbulos rasos, anquiloglossia, prejuízo da fala, perda dentária e alteraçao da mímica facial5 .

As queimaduras por álcalis penetram mais profundamente na pele quando comparadas às queimaduras térmicas ou por ácidos2, resultando em lesoes mais graves e debilitantes. Os mecanismos da lesao sao: oxidaçao, reduçao, corrosao, citotoxidade e isquemia4. A gravidade das injúrias tissulares produzidas por substâncias cáusticas está diretamente relacionadas a tipo, quantidade e concentraçao da substância, assim como tempo de contato com a superfície corporal6. A soda cáustica, em especial, causa necrose de liquefaçao, reagindo com proteínas tissulares, formando proteinatos e, com gordura, formando sabao e água. Ocorrem implicaçoes agudas, crônicas e até mesmo sequelas permanentes. Uma complicaçao tardia é a transformaçao maligna, estimada em 10,8%, ou 3000 vezes maior do que a populaçao em geral7.

O processo fisiopatológico acontece em estágios. Primeiramente, ocorre necrose eosinofílica, edema e intensa congestao hemorrágica, com os tecidos evoluindo do branco para escara cinza até preta. Após 10 dias, inicia-se o tecido de granulaçao e, em cerca de 3 semanas, há proliferaçao fibroblástica e cicatricial, com início das estenoses7.

Na regiao de cabeça e pescoço, a queimadura é considerada grave, requerendo atençao especial pelo alto risco de complicaçoes, como infecçao, retraçao cicatricial e comprometimento de estruturas nobres da face (olhos, pálpebras, nariz, lábios, cavidade oral)8-10.


RELATO DO CASO

Paciente de 35 anos, sexo masculino, vítima de agressao por soda cáustica em face, principalmente olhos e cavidade oral, apresentando queimadura de 2º e 3º graus. Após atendimento inicial em outro serviço, foi transferido para o Serviço de Queimaduras do Hospital do Servidor Público Estadual de Sao Paulo, no 1º dia do evento.

As lesoes oculares foram acompanhadas pela equipe de Oftalmologia, que realizou, inicialmente, cobertura das escleras com retalho de conjuntiva, e, posteriormente, enucleaçao do olho direito e transplante de córnea em olho esquerdo, sem, entretanto, recuperaçao da funçao visual.

Evoluiu após aproximadamente um mês da queimadura com dificuldade progressiva de abertura bucal, movimentaçao labial e lingual e consequente restriçao alimentar e de higiene oral (Figura 1). O paciente foi mantido durante todo o tratamento com aporte nutricional por sonda nasoenteral.


Figura 1 - Pré-operatório: máxima abertura oral.



Com os diagnósticos de microstomia e aderência de toda mucosa jugal anterior e gengiva, obliterando o espaço vestibular superior e inferior, optou-se pelo tratamento cirúrgico.

Sob anestesia geral com intubaçao nasotraqueal, foi realizada comissurotomia extensa e liberaçao das firmes aderências do espaço vestibular, com dissecçao romba e com cautério, até melhora considerável da amplitude de abertura oral (Figura 2). Observou-se mínima mucosa oral viável para possível retalho local. Decidido, entao, por tratamento com enxertia de pele parcial de espessura fina de coxa, retirada com faca de Blair. Foi enxertada toda área cruenta de mucosa jugal e o enxerto fixado com sutura com fio absorvível. A comissuroplastia também foi realizada com enxertia de pele parcial fina (Figura 3). Curativos foram alocados e mantidos por 5 dias para melhor integraçao enxerto-leito receptor (Figura 4).


Figura 2 - Comissurotomias e liberaçao do espaço vestibular.


Figura 3 - Enxerto de pele parcial em vestíbulos e comissuras.


Figura 4 - Pós-operatório imediato: curativos.



O doente evoluiu satisfatoriamente, permanecendo com dieta nasoenteral até o 10º dia pós-operatório, quando foi iniciada dieta líquida, progredindo em 10 dias para dieta geral e início de fisioterapia perioral e do uso de órteses ("splints") orais. Alcançou-se melhora considerável da capacidade de ingesta alimentar, da mastigaçao, da fala e da higiene oral, com ganho de 300% na amplitude de abertura bucal e grande satisfaçao da equipe cirúrgica e do paciente (Figura 5).


Figura 5 - Comissurotomias e liberaçao do espaço vestibular.



DISCUSSAO

Os pacientes com queimaduras de face apresentam graves alteraçoes morfológicas que comprometem a realizaçao de várias funçoes do sistema estomatognático e da mímica facial11. As lesoes que comprometem a comissura labial sao mais frequentes em crianças em idade escolar e podem causar microstomias, com importantes complicaçoes estéticas e funcionais, como alimentaçao, fala e higiene oral12. A característica esfincteriana da musculatura dos lábios e suas estruturas adjacentes proporcionam o desenvolvimento de retraçoes e contraturas cicatriciais periorais, que podem determinar graus variados de microstomia8,13.

No manejo agudo desses doentes é necessário conhecer a formulaçao, o estado físico, a apresentaçao e a quantidade da substância envolvida. As vias aéreas devem ser prontamente asseguradas, além de alívio da dor e hidrataçao. É contraindicada neutralizaçao da substância ou induçao de vômitos. O uso rotineiro de corticoides e antibióticos é controverso. Intervençao maxilo-facial precoce é essencial para ajudar na prevençao de estenose e anquilose extraarticular no esforço de manter a funçao oral7.

No tratamento das lesoes orais por queimadura, há relatos, na literatura, do uso de dispositivos de imobilizaçao ("splints" orais) e de fisioterapia perioral na tentativa de evitar a contratura da comissura14, bem como múltiplas técnicas cirúrgicas, como: zetaplastias, enxertos de pele, inclusive com uso de tecido autólogo de prepúcio, comissurotomias, retalhos locais, nasolabiais e de língua e retalhos vascularizados de antebraço e jejuno para reconstruçao da mucosa oral15. Geralmente, apresentam resultados pobres e discordantes entre os aspectos funcionais e estéticos13. A despeito do tratamento, os pacientes desenvolverao cicatrizes, resultando em estenose oral e anquilose extra-articular. Estuda-se, atualmente, o uso de agentes químicos inibidores de fibrose para prevençao das sequelas7.

O caso relatado tem a peculiaridade de ser uma grave lesao dos olhos e da cavidade oral, sem comprometimento aparente do esôfago, com evoluçao para perda visual e estenose precoce com limitaçao funcional da boca devido à microstomia e obliteraçao dos sulcos bucais (vestíbulos rasos). O tratamento cirúrgico com enxerto de pele parcial intraoral foi bem sucedido, demonstrando que seu uso é uma boa opçao terapêutica nos casos de indisponibilidade da mucosa jugal em lesoes orais extensas.

Pela alta complexidade e gravidade desses casos, é necessária a promoçao da educaçao e de maiores cuidados com as crianças no intuito de prevenir tais tipos de queimaduras13, as quais, quando ocorrem, infelizmente, requerem acompanhamento por toda a vida7.


REFERENCIAS

1. De-Souza DA, Marchesan WG, Greene LJ. Epidemiological data and mortality rate of patients hospitalized with burns in Brazil. Burns. 1998;24(5):433-8.

2. Lorette JJ Jr, Wilkinson JA. Alkaline chemical burn to the face requiring full-thickness skin grafting. Ann Emerg Med. 1988;17(7):739-41.

3. Gomes DR, Serra MC, Macieira Jr L. Condutas atuais em queimaduras. Rio de Janeiro:Revinter;2001. p.117-22.

4. Sanchez NB. Comissuroplasty in a patient with microstomia caused by oral burn. Colomb Med. 2008;39(1):64-8.

5. Varkey P, Tan NC, Chen HC. Corrosive injury of oral cavity: a rare presentation. J Plast Reconstr Aesthet Surg. 2006;59(10):1110-3.

6. Mamede RC, Melo Filho FV. Ingestion of caustic substances and its complications. Sao Paulo Med J. 2001;119(1):10-5.

7. Ryan F, Witherow H, Mirza J, Ayliffe P. The oral implications of caustic soda ingestion in children. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol Endod. 2006;101(1):29-34.

8. Borges GRA, Vieira ACC, Barreto MGP. Queimadura de face: abordagem fonoaudiológica na prevençao de microstomia. Rev Bras Queimaduras. 2011;10(1):35-8.

9. Castellano AGD, Moreira H, Zago RJ, Milicovsky FS. Avaliaçao epidemiológica dos pacientes vítimas de queimadura ocular pelo agente químico cal no Serviço de Oftalmologia do Hospital Universitário Evangélico de Curitiba. Arq Bras Oftalmol. 2002;65(3):311-4.

10. Fish R, Davidson RS. Management of ocular thermal and chemical injuries, including amniotic membrane therapy. Curr Opin Ophthalmol. 2010;21(4):317-21.

11. Freitas VL, Souza LMB. A fonoaudiologia nas queimaduras de face e pescoço. Rev Bras Promoçao Saúde. 2005;18(2):105-9.

12. Pitanguy I, Lima PV, Muller P, Persichetti P. Consideraçoes sobre queimaduras elétricas do lábio. Rev Bras Cir. 1986;76(4):231-42.

13. Mordjikian E. Severe microstomia due to burn by caustic soda. Burns. 2002;28(8):802-8.

14. Richard RL, Staley MJ. Splinting techniques for the burn patient. In: Burn care and rehabilitation: principles and practice. Philadelphia: FA Davis;1994. p.256-8.

15. Silfen R, Hudson DA, Skoll PJ. The use of the prepuce for reconstruction of an intraoral burn. Ann Plast Surg. 2000;44(3):317-9.










1. Médico Residente do 2º ano do Programa de Residência Médica em Cirurgia Plástica do Hospital do Servidor Público Estadual de Sao Paulo, Sao Paulo, SP, Brasil.
2. Médico Residente do 1º ano do Programa de Residência Médica em Cirurgia Geral do Hospital do Servidor Público Estadual de Sao Paulo, Sao Paulo, SP, Brasil.
3. Médico Assistente do Serviço de Queimaduras do Hospital do Servidor Público Estadual de Sao Paulo, Sao Paulo, SP, Brasil.
4. Diretor do Serviço de Queimaduras do Hospital do Servidor Público Estadual de Sao Paulo, Sao Paulo, SP, Brasil.
5. Diretor da Disciplina de Cirurgia Plástica e Queimaduras do Hospital do Servidor Público Estadual de Sao Paulo, Sao Paulo, SP, Brasil.

Correspondência:
Rafael Luis Sakai
Av. Ibirapuera, 981 - 5º andar - Vila Clementino
Sao Paulo, SP, Brasil - CEP: 04029-000
E-mail: rafa_sakai@yahoo.com

Artigo recebido: 8/10/2011
Artigo aceito: 12/1/2012

Trabalho realizado no Serviço de Cirurgia Plástica e Queimaduras do Hospital do Servidor Público Estadual de Sao Paulo - IAMSPE, Sao Paulo, SP, Brasil.

© 2024 Todos os Direitos Reservados