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Artigo Original

Diferenças na avaliação da superfície corporal queimada de crianças nas transferências para uma unidade de tratamento de queimados de referência no sul do Brasil

Differences in the assessment of the burned body surface of children in transfers to a reference burn treatment unit in southern Brazil

Laisa Goulart Saviatto1,8; Maurício José Pereima2; João Paulo Picasky3; Bruna Baioni Sandre Azevedo4; Rodrigo Feijó5; Johny Grechi Camacho6; Felippe Flausino Soares7

DOI: 10.5935/2595-170X.20240016

RESUMO

OBJETIVO: Analisar as diferenças na avaliação da superfície corporal queimada (SCQ) entre os hospitais e unidades de atendimento de origem quando comparados ao atendimento inicial para a unidade de tratamento de queimados e identificar a variação cálculo de SCQ.
MÉTODO: Estudo analítico observacional com análise comparativa da SCQ do "Formulário de transferência para o paciente queimado" e na chegada à Unidade de Tratamento de Queimados (UTQ), bem como outros aspectos qualitativos e quantitativos da internação do paciente.
RESULTADOS: Houve estimativa exagerada em 76,4% dos pacientes (n=39), destes, 32 figuravam no grupo de SCQ% menor do que 15%; a avaliação foi em média 291% maior (p-valor 0,0001). O grupo etário de 1 a 4 anos de idade representa 56,4% (n=29) dos pacientes. O agente causal de 60,8% (n=31) dos casos foi escaldadura, e houve correlação significativa (p-valor 0,014) entre o tempo de permanência hospitalar e o agente causal, com as queimaduras por fogo e choque elétrico permanecendo por 26±9,35 dias. Também, 66,7% dos pacientes incluídos neste estudo foram transferidos à UTQ com hidratação já iniciada na cidade de origem.
CONCLUSÕES: As estimativas de SCQ obtidas antes, por não especialistas nos hospitais de origem, e após a transferência a uma UTQ, foram superestimadas na maior parte dos casos, prejudicando o atendimento e com potencial para gerar danos graves ao paciente. Desta forma, há necessidade de treinamentos nas escolas médicas, melhorar a qualidade do atendimento e, primeiramente, não causar iatrogenias, evitando mais uma variável para contribuir com o "fluid creep".

Palavras-chave: Queimaduras. Criança. Superfície Corporal.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To analyze the differences in the evaluation of the total burned body surface (BBS) between the hospitals and care units of origin when compared to the initial care for the burn care unit and to identify the variation in the calculation of the BBS.
METHODS: Comparative analysis of TBS the "Transfer form for the burned patient" and on arrival at the Burn Care Unit (BCU) as well as other qualitative and quantitative aspects of the patients hospitalization.
RESULTS: There was an exaggerated estimate in 76.4% of the patients (n=39, 32 were in the BBS% group lower than 15%; the evaluation was on average 291% higher (p-value 0.0001). The age of 1 to 4 years of age represents 56.4% (n=29) of the patients. The causal agent of 60.8% (n=31) was scalding, and there was a correlation (p-value 0.014) between the length of hospital stay and the causal agent, with burns by fire and electric shock remaining for 26±9.35 days. Also, 66.7% of the patients in this study were transferred to the BCU with hydration started in the city of origin.
CONCLUSIONS: The estimates of BBS obtained before, by non-specialists in the hospitals of origin, and after the transfer to a BCU, were overestimated in most cases, impairing care and with the potential to generate serious harm to the patient. Thus, there is need for training in medical schools, improve the quality of care and, firstly, not cause iatrogenics, avoiding another variable to contribute to the "fluid creep".

Keywords: Burns. Child. Body Surface Area.

INTRODUÇÃO


As queimaduras no Brasil representam um agravo significativo à saúde pública, com incidência de aproximadamente 1.000.000 casos ao ano, dentre os quais, 40 mil demandam hospitalização e com as crianças, somando aproximadamente dois terços do total de casos1,2. Nos Estados Unidos as queimaduras ocupam, junto com os acidentes de trânsito, afogamentos e sufocamentos, as quatro principais causas de injúrias incidentais, e a maior causa de morte em crianças de 1 a 14 anos naquele país3.


As queimaduras são definidas como agressões cutâneas e de tecidos adjacentes provenientes de fontes de energia variadas, como térmica, elétrica, química e radioativa, com rompimento da continuidade da pele e têm como consequência o comprometimento de funções como controle térmico, homeostase hidroeletrolítica e barreira protetiva4,5.


Para classificar o paciente conforme a gravidade, determinar conduta de tratamento e prognóstico, relacionam-se alguns fatores, como a profundidade da queimadura, a faixa etária, agente causal, comprometimento de estruturas nobres (olhos, períneo, mãos) e a área de superfície corporal queimada (SCQ)6. Esta última tem grande relevância, pois permite caracterizar o paciente como um pequeno, médio ou grande queimado7,8.


A SCQ pode ser estimada considerando regiões descritas como queimaduras de espessura parcial superficial e profunda e as de espessura total, utilizando diversos métodos. Os primeiros datam do final do século XIX, com a estimativa de Berkow como precursora de dois métodos amplamente utilizados até hoje, a regra da palma da mão, e a regra dos 9 de Wallace9. Esta delimita regiões anatômicas com múltiplos de 9 de SCQ, e utiliza como parâmetro, assim como a regra da palma da mão, que a SCQ da palma da mão representa 1%9,10.


Ambas são consideradas métodos falhos, de modo que podem gerar resultados incorretos em pacientes com sobrepeso e crianças.10 O método de Lund e Browder é considerado o mais acurado para o cálculo em pediatria, por relacionar a área da superfície corporal queimada com a faixa etária do paciente9. Além destes, novas tecnologias permitem o cálculo da SCQ por meio de aplicativos de celular9,10.


A avaliação adequada da SCQ é o ponto de partida para o tratamento, uma vez que é a partir dela que são calculados os volumes de líquidos intravenosos para reposição hídrica, manejo inicial que produz impacto nos índices de sobrevivência11. A avaliação inadequada da SCQ pode acrescentar sérias complicações a um paciente grande queimado12,13.


Uma estimativa menor que a real da SCQ pode levar a uma hidratação insuficiente, com consequente insuficiência renal, necrose tubular aguda, translocação bacteriana pela perda da barreira mucosa na isquemia intestinal e aprofundamento da queimadura nas zonas de estase de Jackson da queimadura11,14,15; por outro lado, uma hidratação exagerada, quando excede o calculado pela fórmula de Parkland, gera o fenômeno descrito por Pruitt como "Fluid Creep", com edema dos tecidos queimados e não queimados, síndrome compartimental abdominal, e, da mesma forma, redução da perfusão tecidual e infecção16.


A literatura sugere que é mais comum a superestimação da extensão das queimaduras, tendo em vista que os cálculos são profissional-dependente e requerem conhecimento básico específico em queimadura10,13. Discrepâncias excedentes de mais de 2 a 3% já são suficientes gerar consequências catastróficas e estão relacionadas ao aumento da mortalidade10,14.


Acrescente-se que, quando estes pacientes são atendidos em hospitais locais da cidade de origem, aguardando a transferência para centros de tratamento de queimados, a avaliação exagerada da superfície corporal queimada, além da reposição hidroeletrolítica inadequada, leva à sobrecarga de internações nos centros de referência, uma vez que estes pacientes poderiam, dependendo da SCQ, ser tratados em suas cidades de origem17.


Objetivo


Comparar as diferenças quantitativas na estimativa de SCQ entre os hospitais e unidades de atendimento da cidade origem do paciente em relação ao atendimento especializado após a transferência a uma Unidade de Tratamento de Queimados (UTQ).


Descrever dados epidemiológicos dos pacientes queimados transferidos e correlacionar dados de tempo de internação e o tratamento realizado em relação às avaliações da SCQ na cidade de origem e na UTQ de referência após a transferência.


 


MÉTODO


Foi realizado um estudo analítico observacional, no período compreendido entre maio de 2021 e janeiro de 2022, a partir de casos de pacientes queimados transferidos de outros hospitais para a Unidade de Tratamento de Queimados do Hospital Infantil Joana de Gusmão (HIJG), localizado em Florianópolis, um centro de referência regional responsável pelo atendimento de queimados em Santa Catarina, estado situado no sul do Brasil, com população de 7.338.473 habitantes18.


Os dados foram obtidos a partir do "Formulário de transferência para o paciente queimado" e dos registros do serviço de emergência no sistema Micromed no prontuário dos pacientes em estudo, sendo coletadas informações referentes ao cálculo de SCQ, tanto pelo serviço de atendimento inicial do paciente como por aquele realizado pela equipe do HIJG no momento de chegada do paciente. Também, foram coletadas as informações referentes ao agente causador da queimadura, idades dos pacientes e tratamento instituído no HIJG.


Todo o processo ocorreu de acordo com as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos estabelecidos pela Resolução Nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde do Ministério de Saúde19. Esta Resolução congrega, no indivíduo e nas coletividades, os quatro referenciais básicos da bioética: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça, entre outros, e objetiva a garantia dos direitos e deveres que dizem respeito à comunidade científica, aos sujeitos da pesquisa e ao Estado19.


Também pelas diretrizes da Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que dispõe sobre as normas e princípios éticos aplicáveis às pesquisas em Ciências Humanas e Sociais, cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização de dados diretamente obtidos com os participantes ou de informações identificáveis que possam acarretar riscos. Pesquisa submetida ao Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Catarina (CAAE: 42612821.4.0000.0121, Número do Parecer: 4.674.777).


Análise estatística


Foi realizada uma análise comparativa entre os valores de SCQ obtidos no "Formulário de transferência para o paciente queimado" e aquele registrado no prontuário no momento de chegada do paciente ao serviço de referência, bem como outros aspectos qualitativos e quantitativos da internação do paciente. Foram consideradas superestimadas as diferenças que foram maiores, em percentual, do que 25% da SCQ adequada, enquanto a estimativa foi considerada adequada quando ficou entre -25% e 25%. Foi realizada por meio do software Epi-info análise estatística ANOVA para comparação de médias de mais de duas populações e teste T para comparação entre médias de dois grupos. Um valor de p<0,05 foi considerado significativo.


Foram coletados dados de 72 pacientes, 21 foram excluídos por não terem o preenchimento das informações relacionadas a SCQ no formulário de transferência. Foram consideradas adequadas as estimativas de SCQ com diferenças percentuais entre -25% e 25% e, para fins de comparação e análise estatística, o paciente com diferença percentual menor do que -25% foi adicionado ao grupo de pacientes "adequados". Com este mesmo objetivo, o único paciente queimado por choque elétrico foi adicionado ao grupo dos pacientes cujo agente causal era fogo, visto que as diferenças percentuais dentro deste grupo mais se aproximaram ao citado.


 


RESULTADOS


Foram estudados 51 pacientes, sendo 40 (78,4%) com SCQ menor do que 15% e 11 (21,6%) maior do que 15%. Na SCQ maior do que 15%, o erro percentual nas estimativas de SCQ foi de 47,8%, com variação de 9,04±9,59% de SCQ média com avaliação exagerada antes da transferência à UTQ (Tabela 1).


 



 


Dos 51 pacientes, cerca de metade apresentava entre 1 e 4 anos de idade (56,9% n=29), 11 tinham menos de 1 ano de idade (21,6%) e, dentro deste grupo, a diferença na estimativa de SCQ média entre a origem e a avaliação inicial no HIJG foi de 13,6±11,9%, com diferença percentual de 145% a mais (Figuras 1A e 1B).


 



 


Quatro pacientes (7,8%) estavam entre os 5 e 9 anos e obteve-se um total de 7 pacientes (13,7%) com 10 a 14 anos.


Dentre os agentes causais, a água quente teve o maior número de representantes, figurando em 60,8% (n= 31) dos atendimentos, seguida por óleo quente (13,7% n=7), fogo e choque elétrico agrupados, com 9,8% do número de pacientes (n=5) e agentes químicos com 7,8% dos pacientes. Álcool e alimento quente, juntos, somam menos de 10% do total, com, respectivamente, 3,9% (n=2) e 3,9% (n=2). A média de diferença da SCQ% estimada no atendimento de origem e no HIJG foi de 8,3±8,1% para os queimados por água quente, com diferença percentual de 96,0% (p-valor <0,05). Nas queimaduras por álcool a diferença média foi de 22±15,5% de SCQ.


A avaliação de acordo com estimativa de SCQ% na origem em relação àquela estimada no HIJG, referente aos grupos etários, agente causal e tempo de internação estão listados na Tabela 2 e Figura 2.


 



 


 



 


A maior parte dos pacientes esteve internada durante um período de 15 a 28 dias (n=21, 41,2%, p-valor 0,013), enquanto apenas 3 pacientes (5,9%) permaneceram por 0 a 2 dias ou por mais de 28 dias. A permanência intra-hospitalar no HIJG durou 3 a 7 dias para 8 pacientes (15,7%) e 8 a 14 dias para 16 pacientes (31,3%). A diferença na estimativa média para os pacientes que permaneceram entre 15 a 28 dias foi de 9,7±11,1% de SCQ, com diferença percentual de 82% (p-valor 0,316).


Dos 51 pacientes, 19 (37,2%) não passaram por intervenções que não fossem trocas de curativos. Os demais 62,7% (n=32) foram submetidos a outro tratamento, como laser facial, enxerto dermoepidérmico e transfusão sanguínea. Todos os pacientes que necessitaram de CHIF realizaram enxerto (n=11, 21,5%), e um (1,9%) realizou os três procedimentos trazidos neste estudo (CHIF, Laser e enxerto) como mostrado na Tabela 3. De todos os 51 pacientes, um necessitou de internação em UTI em virtude de distúrbios hidroeletrolíticos com repercussões clínicas. Na cidade de origem, antes da transferência, 34 (66,6%) dos pacientes receberam hidratação intravenosa, como descrito no formulário de transferência, nem todos registraram a utilização da fórmula de Parkland. Não foram coletados dados referentes a hidratação durante a internação na UTQ do HIJG.


 



 


Também foram comparadas as variáveis: agente causal, idade, diferença da estimativa de SCQ na origem (maior, adequada, menor) e extensão da superfície corporal queimada (<15% ou ≥15%) com o tempo de internação, para determinar se houve interação significativa entre esses fatores. Os dados estão na Tabela 3, expondo tempo de internação relacionado de maneira significativa com o agente causal, de modo a trazer de maneira decrescente, fogo e choque elétrico (26±9,35 dias, p-valor 0,014), agentes químicos (17,25±4,03 dias), óleo quente, água quente, alimento quente e álcool, com a menor média (8,00±0,00 dias).


 


DISCUSSÃO


A avaliação da SCQ tem impacto direto sobre o prognóstico de pacientes queimados, principalmente na faixa etária pediátrica, em que a razão da área corporal pelo peso é aumentada em relação aos adultos, e pequenas diferenças e atrasos na obtenção de estimativas corretas trazem consequências14. A literatura confere à formula de Parkland, que relaciona SCQ e peso do paciente, acurácia adequada para guiar a reposição volêmica do paciente queimado e, por vezes, superior à estratégia de avaliação direta ("goal directed"), esta com maior número de ocorrências de "fluid creep"11.


Este fenômeno, resultado de ressuscitação volêmica exagerada, é responsável por complicações como anasarca, obstrução das vias aéreas superiores, com consequente necessidade de intubação orotraqueal, prolongar o tempo de intubação naqueles que já necessitavam dela, aprofundamento das queimaduras, e, dentre outras, síndrome compartimental abdominal16. Além disso, a infusão de líquidos IV nas primeiras 24h, maior do que o calculado pela fórmula de Parkland, representa maior hidratação nas horas subsequentes também, exacerbando o efeito negativo da hiper-hidratação16.


Durante o período de coleta de dados deste estudo, na avaliação antes da transferência ao centro de referência de tratamento de queimados, em serviços de emergência hospitalar das cidades de origem dos pacientes, muitas delas distantes do CTQ, houve estimativa exagerada em 76,4% dos pacientes (n=39). Dentre os pacientes com estimativa exagerada, 32 figuravam no grupo de SCQ% menor do que 15%; a avaliação foi em média 291% maior, com diferença de estimativa de SCQ média 12,20±8,96.


A revisão sistemática de Brekke et al.20, publicada recentemente, que teve 28 estudos incluídos, cita estimativa exagerada em média em mais de 50% dos pacientes nos estudos analisados. Neste estudo houve estimativa adequada em 21,5% (n=11) dos pacientes e uma subestimação da SCQ em apenas 1 paciente (1,9%). Entre os pacientes com estimativas adequadas ou menores (apenas 1 paciente), a diferença percentual foi de 7,3%. A razão das superestimativas versus subestimação de SCQ neste estudo fica de 39:1.


Existe relato na literatura9 de que, quando em comparação à avaliação dos médicos em atendimento emergencial prévio à transferência, a estimativa pode ser extrapolada até valores próximos de 200% do que a recebida dos especialistas; o presente estudo evidenciou uma diferença percentual média de 104% a mais. É mencionado nos estudos20 que as queimaduras de menor extensão, por vezes estabelecidas como as de SCQ menor do que 15%, por vezes, menor do que 20%, são as mais superestimadas.


Desta forma, esta pesquisa demonstrou que dos 39 pacientes cuja SCQ na transferência fora maior do que a do hospital de referência, 82,0% figuravam no grupo com SCQ < 15%. A revisão sistemática de Brekke et al.20 corrobora com estes achados, demonstrando que a maior tendência nas transferências é de superestimar a SCQ e que, quanto maior a extensão da queimadura, menor a ocorrência deste fenômeno.


A literatura sugere grupo etário que inclui pacientes entre 1 e 4 anos de idade representa aproximadamente metade das internações advindas de transferências de queimados4,12,14. Fato este corroborado com este estudo, no qual 56,9% dos pacientes incluídos (n=29) se enquadram nesta categoria. Crianças mais velhas, com 10 a 14 anos, tiveram estadia mais longa no hospital, com média de 21,2±10,99 dias, enquanto as menores de 1 ano tiveram em média estadia de 12,0±7,13 dias.


Diante das outras variáveis, o tempo de internação não teve relação estatística com a diferença da estimativa de SCQ, tampouco com a extensão da SCQ . Quando da análise do tempo de internação em relação ao agente causal da queimadura, houve diferença relevante, com pacientes queimados por fogo e choque elétrico permanecendo por mais tempo no hospital, com estadia média de 26±9,3 dias (p-valor 0,014). Em Dittrich et al.16 concluiu-se que uma estadia hospitalar maior do que 14 dias, associada à ocorrência do evento de "fluid creep" estava relacionada a infecções e piores prognósticos nesses cenários.


A diferença percentual da estimativa de SCQ se mostrou significativa quando em relação ao agente causal, embora não se tenha encontrado dados para corroborar com esta análise na literatura. As escaldaduras, causadas por água quente, costumam ser citadas4,12,14 como as maiores responsáveis por queimaduras em crianças, o que é, também, demonstrado neste estudo. A fervura da água se apresenta nas diversas atividades do dia a dia e, como maior causadora de queimaduras na população pediátrica, coloca-se em consonância com a estatística das mortes por causa incidental, de modo a fazer emergir um alerta a população geral.


O tipo de procedimento realizado não apresentou relevância significativa quando comparado à diferença percentual das estimativas de SCQ. Em Daniels et al.11 concluiu-se que um estado de tratamento de hipovolemia permissiva - quando a hidratação é realizada em valores seguramente mais baixos do que os estabelecidos pela fórmula desenvolvida por Baxter - representa menos intervenções e procedimentos realizados; além disso, tem como resultado menos desfechos desfavoráveis, com menor mortalidade em relação aos pacientes com hidratação exagerada11,16.


O erro na estimativa de SCQ mostra-se intimamente relacionado com a hidratação14; 66,7% dos pacientes incluídos neste estudo foram transferidos à UTQ com hidratação já iniciada na cidade de origem e, ao considerar que 76,4% deles tiveram suas SCQ estimadas com, em média, 291% a mais do que a recebida na unidade de tratamento de queimados, pode-se concluir a possibilidade de hidratação excessiva antes mesmo da transferência.


Como exposto em Daniels et al.11, existe registro em pesquisas de que 70% das instituições utilizam a fórmula de Parkland e, apesar disso, 55% a 100% dos pacientes recebem volumes aumentados de ressuscitação volêmica, quando avaliados corretamente. Sendo assim, a estimativa da SCQ adequada é passo primordial no manejo adequado do paciente queimado.


Informações mais detalhadas sobre o volume de hidratação dos pacientes antes da transferência e no tratamento instituído na UTQ não foram coletadas para este estudo e são de imensa importância para corroborar e acrescentar com o conhecimento na área, possibilitando futuramente uma padronização no tratamento de queimados em UTQs pediátricas. Também, a utilização de aplicativos como o e-burn foi sugerida às instituições de atendimento inicial, mas não houve ferramenta de checagem para saber se o mesmo fora aplicado ou não, fato que, em próximos estudos, pode ser abordado.


Como trazido pela literatura2,9,10,20, os dados do presente estudo explicitam possivelmente um conhecimento parco em queimaduras por médicos não especialistas na área, prejudicando o atendimento e com potencial para gerar danos graves ao paciente. Por isso, urge a necessidade de treinamentos nas escolas médicas, a fim de melhorar a qualidade do atendimento e cumprir com o dever de, primeiramente, não causar iatrogenias, evitando, assim, mais uma variável a se somar no desfecho de "fluid creep".


 


CONCLUSÕES


Pode-se concluir com este estudo que a maioria (56,9% n=29) dos pacientes queimados transferidos a uma UTQ em Santa Catarina, no sul do Brasil, está na faixa etária dos 1 aos 4 anos de idade. Além disso, evidenciou-se que as queimaduras por escaldadura são as mais frequentes, de modo a representar 60,8% do total de pacientes. Concluiu-se também que as queimaduras por fogo e choque elétrico costumam levar a permanências mais longas no hospital, permanecendo em média 26±9,3 dias (p-valor 0,014).


Por fim, o principal objeto de estudo, a discrepância na avaliação da SCQ antes da transferência e no atendimento na UTQ, provou-se gritante, existindo superestimativa na grande maioria dos casos (76,4% n=39), de modo a apresentar erro médio percentual grosseiro, com 291% de SCQ estimada a mais.


 


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Recebido em 12 de Julho de 2023.
Aceito em 11 de Janeiro de 2025.

Local de realização do trabalho: Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Pediatria, Florianópolis, SC, Brasil.

Conflito de interesses: Os autores declaram não haver.


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