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Artigo Original

Características antropométricas e das queimaduras que influenciam na gravidade da injúria renal aguda tardia do paciente grande queimado

Anthropometric and burn characteristics that influence the severity of late acute kidney injury of major burn patients

Paula Montenegro1; Claudio Luciano Franck2; Eduardo Bolicenha Simm3

DOI: 10.5935/2595-170X.20240002

RESUMO

OBJETIVO: Analisar os fatores que influenciam na gravidade da injúria renal aguda (IRA) tardia do paciente queimado internado em Unidade de Terapia Intensiva em relação a características antropométricas e da queimadura desses pacientes.
MÉTODOS: Estudo transversal com análise retrospectiva e analítica, realizado em hospital referência no estado do Paraná. Foram avaliados 137 pacientes no período de um ano, sendo analisadas as características antropométricas, como sexo, faixa etária e obesidade, e características da queimadura, como etiologia, porcentagem da superfície corporal queimada e porcentagem de queimadura de 3º grau. Esses fatores foram relacionados aos estágios de IRA tardia dos pacientes durante o internamento.
RESULTADOS: Os fatores relacionados a características antropométricas dos pacientes apresentaram diferença estatisticamente significativa com os estágios de IRA apenas com a faixa etária (p=0,010), enquanto os fatores sexo (p=0,114) e obesidade (p=0,140) não apresentaram essa correlação. Quanto aos fatores relacionados a características da queimadura e aos estágios de IRA, a porcentagem de superfície corporal queimada (p=0,003) e de queimadura de 3º grau (p=0,032) apresentou diferença estatisticamente significativa com os estágios de injúria renal aguda, enquanto o fator etiologia da queimadura não mostrou essa correlação (p=0,576).
CONCLUSÕES: As características antropométricas e das queimaduras que influenciam a injúria renal aguda tardia do grande queimado são, respectivamente: idades mais avançadas e superfície queimada maior que 30% e queimaduras de 3º grau maiores de 15%.

Palavras-chave: Queimaduras. Injúria Renal Aguda. Fatores de Risco. Pacientes Internados. Unidades de Queimados.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To analyze the factors that influence the severity of late acute kidney injury (AKI) in burn patients admitted to an Intensive Care Unit related to anthropometric and burn characteristics of these patients.
METHODS: Cross-sectional study with retrospective and analytical analysis, carried out in a reference hospital in the state of Paraná, Brazil. 137 patients were evaluated over a period of one year, analyzing anthropometric characteristics, such as sex, age range and obesity, and burn characteristics, such as etiology, burned body surface area and percentage of 3rd degree burn. These factors were related to the stages of late AKI of patients during hospitalization.
RESULTS: The factors related to the anthropometric characteristics of the patients showed a statistically significant difference with the AKI stages only with the age range (p=0.010), while the factors sex (p=0.114) and obesity (p=0.140) did not show this correlation. Regarding factors related to burn characteristics and AKI stages, the percentage of burned body surface area (p=0.003) and 3rd degree burn (p=0.032) showed a statistically significant difference with the stages of acute kidney injury, while the burn etiology factor did not show this correlation (p=0.576).
CONCLUSIONS: The anthropometric and burn characteristics, which influence late AKI in major burns are respectively: older ages, burned surface area greater than 30% and third-degree burns greater than 15%.

Keywords: Burns. Acute Kidney Injury. Risk Factors. Inpatients. Burn Units.

INTRODUÇÃO


No Brasil, as queimaduras representam um agravo significativo à saúde pública, podendo acometer as pessoas em qualquer fase da vida, influenciando diretamente na qualidade de vida, provocando dor, sofrimento, danos incapacitantes e gerando afastamentos da atividade laboral. Dependendo da gravidade e condições prévias do paciente, o tratamento pode necessitar de internações prolongadas, diversos procedimentos cirúrgicos e um longo processo de reabilitação. As queimaduras culminam em um impacto psicossocial e econômico elevado, representando uma despesa alta para a seguridade social. Dados compilados do DATASUS entre os anos de 2012 e 2022, demonstrados na Figura 1, evidenciam a importância econômica dos acidentes com queimaduras. Durante os anos avaliados, ocorreu uma média anual de 26 mil internamentos, com um custo médio de R$ 2.308,24 por internação, o que estima um valor gasto de 60 milhões de reais por ano para o tratamento de queimaduras no Brasil1.


 



 


Ainda, segundo os dados do DATASUS nesses mesmos anos, ocorreram uma média de 763 óbitos causados diretamente por queimaduras anualmente, conforme demonstrado na Figura 2, com uma taxa de mortalidade média de 2,91. Entretanto, o número de óbitos anuais parece estar subestimado, visto que que mortes por complicações das queimaduras, como sepse, falência de órgãos, entre outras, podem ser registradas como outras causas, não relacionadas à queimadura. Estima-se que cerca de 2.500 pessoas morram anualmente devido às queimaduras propriamente ditas ou suas complicações no Brasil2.


 



 


O desequilíbrio hidroeletrolítico decorrente do trauma térmico é responsável pelo quadro agudo de choque hipovolêmico e, consequentemente, pela injúria renal aguda3, sendo uma complicação comum em pacientes queimados4. A injúria renal aguda (IRA) é o declínio da taxa de filtração glomerular que ocorre de forma abrupta, resultando no aumento de escórias nitrogenadas e alteração na hemostasia de fluidos, de eletrólitos e/ou do equilíbrio ácido-básico5. Conforme a orientação do KDIGO (do inglês Kidney Disease Improving Global Outcomes), IRA é definido como aumento de 0,3mg/dL na creatinina sérica basal dentro de 48 horas, aumento de 1,5 vezes na creatinina sérica basal (se conhecida ou que se presume ser aquela dos últimos sete dias) ou redução do débito urinário para menos que 0,5mL/Kg durante 6 horas6,7.


A IRA relacionada à queimadura é tradicionalmente classificada em dois tipos: precoce, quando ocorre até 3 dias após a queimadura, ou tardia, quando ocorre entre 4 até 14 dias após a queimadura. A injúria precoce geralmente resulta de hipovolemia, má perfusão renal, toxicidade direta e obstrução de proteínas desnaturadas e fatores cardíacos8. A IRA tardia pode se desenvolver nos dias seguintes após o trauma, e ocorre, principalmente, por complicações sépticas e drogas nefrotóxicas utilizadas durante a internação9.


 


OBJETIVO


Analisar os fatores que influenciam na gravidade da IRA tardia do grande queimado internado em Unidade de Terapia Intensiva em relação a características antropométricas e características da queimadura desses pacientes.


 


MÉTODO


Trata-se de uma pesquisa do tipo retrospectiva, analítica e transversal, utilizando dados coletados por meio de prontuários eletrônicos e banco de dados coletados pela equipe da Unidade de Terapia Intensiva de Queimados (UTIq) dos pacientes adultos queimados admitidos na UTIq do Hospital Universitário Evangélico Mackenzie do Paraná (HUEM), em Curitiba/PR, durante o período de março de 2022 a março de 2023.


Durante o período do estudo, um total de 165 pacientes foram admitidos na UTIq do HUEM. Como critérios de inclusão, participaram dessa pesquisa os pacientes queimados admitidos na UTIq durante o período entre março de 2022 e março de 2023, maiores de 18 anos e sem doença renal prévia conhecida. Foram excluídos os pacientes que ficaram internados por um período inferior a 4 dias. Ao adotar esses critérios, no total foram analisados 137 pacientes durante o período.


Os pacientes selecionados após os critérios de exclusão foram classificados conforme a gravidade da injúria renal aguda, conforme recomendado pelo critério KDIGO10. A IRA desses pacientes foi considerada como IRA tardia, visto que os pacientes com menos de 4 dias de internação foram excluídos do estudo.


Nesse estudo, foi determinado como creatinina basal dos pacientes a primeira creatinina sérica medida na admissão, visto a impossibilidade de obtenção da creatinina sérica basal da maioria dos pacientes. Para a avaliação da gravidade, a creatinina sérica máxima alcançada durante o internamento foi considerada para a classificação do estágio da IRA.


Para alguns pacientes, não foi possível considerar como creatinina basal a primeira creatinina sérica realizada após admissão, visto que apresentavam valores presumidamente altos pela idade e sexo dos pacientes. Assim, para esses casos, foi estimada a creatinina basal conforme idade e sexo, disponível nas recomendações do KDIGO10.


Após a adoção desses critérios, os pacientes foram classificados em "sem IRA", "IRA 1", "IRA 2" e "IRA 3", conforme a situação da IRA que apresentaram durante o internamento utilizando os critérios KDIGO10. Pacientes classificados como IRA 1 apresentaram aumento de 1,5 a 1,9 vezes a creatinina basal ou aumento maior ou igual a 0,3mg/dl da creatinina basal. Pacientes classificados como IRA 2 apresentaram aumento de 2,0 a 2,9 vezes a creatinina basal. Pacientes classificados como IRA 3 apresentaram aumento de 3,0 vezes a creatinina basal, creatinina maior ou igual a 4,0mg/dl ou necessitaram de diálise. Pacientes classificados como sem IRA não apresentaram critérios para definição de IRA.


As características antropométricas avaliadas nesse estudo incluíram sexo, faixa etária e índice de massa corporal (IMC). O fator sexo foi classificado como feminino ou masculino. O fator faixa etária foi classificado como adulto jovem, quando idade entre 18 e 30 anos, adulto, quando idade entre 31 e 59 anos e idoso, quando idade de 60 anos ou mais. O fator índice de massa corporal foi classificado como não obesos, quando o IMC foi menor de 30kg/m2 e obesos, quando o IMC foi maior ou igual a 30kg/m2.


As características da queimadura avaliadas nesse estudo, que podem estar associadas à gravidade da injúria renal aguda dos pacientes queimados, foram etiologia da queimadura, porcentagem da superfície corporal queimada (%SCQ) e porcentagem de queimadura de 3º grau. O fator etiologia da queimadura foi classificado como térmica, elétrica e química. O fator %SCQ foi classificado como menor ou igual a 30% e maior que 30%. O fator porcentagem de queimadura de 3º grau foi classificado como sem lesão de 3º grau, lesão entre 1 e 15% e lesão acima de 15%. A média da SCQ dos pacientes incluídos nesse estudo foi de 30%±13% e mediana foi de 30%; por esse motivo, a porcentagem escolhida para dividir os níveis de SCQ foi de 30%. A média da porcentagem de queimadura de 3º grau dos pacientes incluídos nesse estudo foi de 13%±10% e mediana foi de 11%.


A análise estatística dos dados foi realizada utilizando o teste Qui-quadrado de Pearson, para verificar se existe associação entre IRA dos pacientes internados e fatores relacionados às características da queimadura do paciente. Para possibilitar a análise estatística, os dados foram categorizados em níveis qualitativos. Foi adotado o intervalo de confiança de 95%, com nível de significância de p<0,05.


A pesquisa foi autorizada pela Diretoria do Hospital e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos do Instituto Presbiteriano Mackenzie, parecer: 6.009.778, e Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) número 68570523.3.0000.0103.


 


RESULTADOS


No total foram avaliados 137 pacientes com queimaduras que necessitaram de internação em Unidade de Terapia Intensiva durante o período de um ano. As características antropométricas e as características da queimadura dos pacientes foram relacionadas à gravidade da injúria renal durante o internamento e estão resumidas na Tabela 1.


 



 


A gravidade da injúria renal aguda dos pacientes queimados internados em UTI foi correlacionada com o sexo dos pacientes internados, com p indicando não haver diferença significativa entre os grupos (p=0,114). A maioria dos pacientes analisados são do sexo masculino, correspondendo a 72,2% de todos os pacientes avaliados durante o período de estudo.


Em relação à gravidade da injúria renal aguda e à faixa etária pacientes internados, a análise estatística demonstrou haver diferença significativa entre os grupos (p=0,010). A maioria dos pacientes internados por queimadura na UTI-HUEM, considerados nesse estudo, foram classificados como adulto, apresentaram faixa etária entre 30 e 60 anos, com média de idade de 43±13 anos.


A presença ou não de obesidade e a gravidade da IRA dos pacientes queimados não indicaram ter relevância significativa (p=0,140). A maioria dos pacientes analisados nesse estudo não apresentaram obesidade, correspondendo a 82,5% de todos os pacientes avaliados durante o período de estudo.


A gravidade da IRA dos pacientes queimados internados em UTI foi correlacionada com a etiologia da queimadura, com p indicando não haver diferença significativa entre os grupos (p=0,576). A maioria dos pacientes analisados apresentavam queimaduras térmicas, correspondendo a cerca de 66,4% do total.


Em relação à gravidade da IRA e à %SCQ dos pacientes internados, a análise estatística demonstrou haver diferença significativa entre %SCQ menor ou igual a 30%, correspondendo a cerca de 54,0% dos pacientes.


A porcentagem de queimadura de 3º grau também demonstrou ser estatisticamente relevante em relação à gravidade da injúria renal aguda (p=0,032). A maioria dos pacientes apresentou porcentagem de queimadura de 3º grau entre 1 e 15%, correspondendo a cerca de 48,9% dos pacientes incluídos nesse estudo.


 


DISCUSSÃO


A avaliação das características antropométricas e a gravidade da injúria renal aguda neste estudo demonstrou concordância com outros estudos em relação à maioria dos pacientes queimados serem do sexo masculino. No que se refere à correlação entre sexo e injúria renal, a maioria dos estudos pesquisados não evidenciou tal relação7,8,11, o que também corrobora com os resultados obtidos nesse estudo.


A idade é uma das variáveis que diversos estudos mostraram ser fator de risco para apresentar injúria renal aguda. Apesar de nem todos os estudos encontrarem uma associação estatisticamente relevante4, a maioria demonstrou que idade é uma variável importante a ser considerada12-14. Um trabalho de meta-análise realizado por Wu et al.11 encontrou 15 estudos que demonstraram associação significante entre idade e injúria renal aguda nos pacientes queimados, o que também foi evidenciado no presente estudo, sendo que os idosos foram mais susceptíveis a maior gravidade da injúria renal. A associação entre idade e mortalidade em pacientes queimados também é bastante relevante, e observada em diversos estudos12,13.


Em relação à obesidade, um grande estudo de meta-análise avaliou quatro estudos que demonstraram não haver associação entre IMC e a ocorrência de IRA nos pacientes queimados11, também corroborando com os resultados do presente estudo, que não mostrou associação significativa. Outro estudo observou um aumento da morbimortalidade em pacientes obesos queimados, apresentando uma mortalidade de 36,4% nesse grupo de pessoas15. Uma possível explicação para a ocorrência de complicações em pacientes obesos pode estar relacionada a um estado pró-inflamatório persistente, causando uma resposta imunológica e metabólica que difere da população sem essa condição.


Alguns estudos demonstram um risco aumentado de desenvolver lesão renal em queimadura por fogo16,17, enquanto em outro a queimadura elétrica apresentou influência significativa8. Neste estudo, entretanto, não foi possível obter uma relação estatisticamente significativa entre a etiologia da queimadura e o maior risco de desenvolver injúria renal aguda.


Entretanto, quando analisamos a extensão da queimadura, muitos estudos corroboram com as evidências encontradas no presente trabalho. Um estudo conduzido em Parkland Memorial Hospital, nos Estados Unidos, separou os grupos de pacientes queimados de acordo com a extensão da queimadura (até 10%, entre 10-40% e acima de 40%), demonstrando também influência entre a extensão da queimadura e a severidade da injúria renal18. Estudo realizado no Helsinki University Hospital, na Finlândia, também demonstrou que a superfície de área queimada foi um dos principais fatores de risco para injúria renal aguda, entretanto, a extensão de queimadura adotada nesse estudo foi de diferente do primeiro estudo comparado (entre 20-30%, entre 31-50% e acima de 50%)16. Outro estudo também comparou pacientes com e sem IRA, demonstrando maior incidência de IRA em pacientes com SCQ mais graves19. Os percentuais de superfície corporal queimada dos trabalhos avaliados foi diferente dos utilizados neste estudo, entretanto, todos corroboram com as diferenças estatisticamente relevantes obtidas nesse trabalho.


A porcentagem de queimaduras de 3º grau indica uma gravidade maior da queimadura, visto que são mais profundas, envolvendo todas as camadas da pele. Foi relatada em cinco estudos uma associação entre alteração renal e profundidade da queimadura11. No presente estudo, também foi observada uma diferença estatisticamente significativa entre os grupos injúria renal aguda e porcentagem de queimadura de 3º grau, quando utilizada a classificação sem lesão, entre 1 e 15% e acima de 15% de queimadura de 3º grau.


 


CONCLUSÕES


As características antropométricas e das queimaduras que influenciam a injúria renal aguda tardia do grande queimado internado em UTI que apresentaram uma associação estatisticamente significativa são a idade mais avançada, porcentagem de superfície corporal queimadora maior que 30% e porcentagem de queimadura de 3º grau maior que 15%. Os fatores sexo e obesidade não apresentaram diferença significativa com a gravidade da IRA durante o internamento, bem como a etiologia da queimadura.


 


REFERÊNCIAS


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Recebido em 28 de Maio de 2024.
Aceito em 27 de Agosto de 2024.

Local de realização do trabalho: Faculdade Evangélica Mackenzie do Paraná, Curitiba, PR, Brasil.

Conflito de interesses: Os autores declaram não haver.


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