985
Visualizações
Acesso aberto Revisado por pares
Relato de Caso

Filtro de veia cava em paciente grande queimado com trombose venosa profunda como alternativa à anticoagulação plena: Relato de caso

Vena cava filter in a major burned patient with deep venous thrombosis as an alternative to full anticoagulation: Case report

Claudio Luciano Franck1; Kahoana Guedes Sanches2; Matheus Guedes Sanches3

RESUMO

OBJETIVO: Relatar a utilização de uso de filtro de veia cava em paciente grande queimado com trombose venosa profunda impossibilitado de receber anticoagulação plena por sangramento intenso em áreas queimadas.
RELATO DE CASO: Sexo feminino, 37 anos, assistida em hospital universitário de referência sob suporte avançado de vida em função de queimaduras geradas por álcool e fogo de segundo e terceiro graus em tórax, face, cervical e membros superiores. Após 34 dias de internamento, diagnosticou-se e confirmou-se por ecoDoppler trombose venosa profunda extensa em membros inferiores, quando iniciou-se anticoagulação plena medicamentosa. Como efeito da anticoagulação, ocorreu um aumento importante e de difícil controle do sangramento nas áreas queimadas durante os procedimentos para desbridamentos e trocas de curativos, inviabilizando sua utilização. Optou-se pela instalação de um filtro de veia cava inferior para evitar o tromboembolismo pulmonar e manteve-se a anticoagulação em dose profilática para evitar o sangramento excessivo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: O uso do filtro de veia cava inferior pode ser uma alternativa em grandes queimados com trombose venosa profunda e impossibilidade de anticoagulação plena, pois permite a continuidade dos cuidados habituais das áreas queimadas, prevenindo o tromboembolismo pulmonar sem aumentar o risco de sangramento.

Palavras-chave: Queimaduras. Trombose Venosa. Coagulação Sanguínea. Anticoagulantes. Filtros de Veia Cava.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To report the use of a vena cava filter in a major burned patient with deep vein thrombosis unable to receive full anticoagulation due to heavy bleeding in burned areas.
CASE REPORT: Female, 37 years old, assisted at a reference university hospital under advanced life support to the detriment of burns generated by alcohol and second and third degree fire on the chest, face, cervical and upper limbs. After 34 days of hospitalization, extensive deep vein thrombosis echocardiography in the lower limbs was diagnosed and confirmed when full drug anticoagulation was started. As an effect of anticoagulation, there was an important and difficult to control bleeding in the burned areas during the procedures for debridement and dressing changes, making its use unfeasible. We opted for the installation of an inferior vena cava filter to prevent pulmonary thromboembolism and anticoagulation in a prophylactic dose was maintained to prevent excessive bleeding.
FINAL CONSIDERATIONS: The use of inferior vena cava filter can be an alternative for large burns with deep vein thrombosis and the impossibility of full anticoagulation, as it allows the continuity of the usual care of the burned areas, preventing pulmonary thromboembolism without increasing the risk of bleeding.

Keywords: Burns. Venous Thrombosis. Blood Coagulation. Anticoagulants. Vena Cava Filters.

INTRODUÇÃO

As queimaduras são a quarta causa mais frequente entre os traumas no mundo, com uma prevalência preocupante nos países subdesenvolvidos, que carecem de infraestrutura para reduzir a incidência e otimizar os resultados. No Brasil, ocorrem cerca de um milhão de casos de queimaduras a cada ano, dos quais 20% são atendidos em serviços de emergência e 40 mil demandam internamento hospitalar1. As queimaduras podem desencadear distúrbios emocionais e físicos que comprometem o equilíbrio orgânico com depleção hídrica, hipermetabolismo, suscetibilidade a infecções e deformidades estéticas2.

A trombose venosa profunda (TVP) é um agravo prevalente em pacientes grande queimados e a individualização do tratamento pode definir o prognóstico. A queimadura predispõe o desenvolvimento de TVP, pois gera inflamação e desencadeia a cascata de coagulação, assim como também pelo fato de permanecerem imobilizados e acamados em internamentos prolongados e submetidos a múltiplos procedimentos cirúrgicos, juntamente com a utilização de cateteres centrais3. A prevenção da TVP com medidas mecânicas e a profilaxia com anticoagulantes é a melhor opção para evitá-la e o tratamento da TVP pode se realizar pela utilização da dose plena do anticoagulante4, todavia, esta terapia pode gerar um risco maior de sangramento nos desbridamentos e curativos, com aumento substancial na morbimortalidade5.

Nas situações em que há necessidade de anticoagulação plena para o tratamento da TVP e pelo risco inerente de tromboembolismo pulmonar (TEP), porém como o sangramento atenta à vida, tornando-se insustentável durante e após os procedimentos corriqueiros para tratamento das queimaduras1,6, a instalação do filtro de veia cava inferior (FVCI) pode ser uma boa alternativa terapêutica.


RELATO DE CASO

Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética, com o número 125989/2019 e relata o caso da paciente S.R.R, sexo feminino, 37 anos, que em agosto de 2019 foi assistida em um hospital universitário de referência em queimadura, no município de Curitiba, PR. Vítima de uma tentativa de homicídio com lesões corporais determinadas pelo ateamento de fogo em álcool sobre a pele, que geraram um acometimento de 45% da superfície corporal queimada (SCQ), com lesões cutâneas profundas de segundo e terceiro graus em tórax, cervical, face e membros superiores.

Necessitou suporte avançado de vida e drogas vasoativas e internamento na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). As queimaduras da região cervical e do tórax impediam que se realizasse punção venosa profunda nessas regiões anatômicas, porém, como havia necessidade, optou-se pela punção da veia femoral na região inguinal, primeiramente na veia femoral direita e 15 dias após na veia femoral esquerda.

No 34° dia de internamento, perceberam-se sinais inflamatórios em raiz de coxa esquerda e empastamento em panturrilhas. Iniciou-se anticoagulação plena com 30 mil unidades internacionais por dia com heparina, embasado no diagnóstico clínico sugestivo de TVP, O ecoDoppler de membros inferiores confirmou o diagnóstico, demonstrando no membro inferior direito trombose recente nos segmentos femoro-poplíteo e em veias musculares gastrocnêmicas, enquanto no membro inferior esquerdo demonstrou trombose recente em segmentos femoro-poplíteo, poplíteo-podal e em veias musculares gastrocnêmicas.

Na rotina dos cuidados das áreas queimadas, durante as trocas de curativos e desbridamentos, ocorreu um sangramento exacerbado, com instabilização hemodinâmica, necessidade de hemotransfusão e reversão da anticoagulação com sulfato de protamina. Na impossibilidade de retornar à anticoagulação plena, juntamente com a necessidade de procedimentos cirúrgicos subsequentes e o risco iminente de TEP, optou-se pela instalação de um FVCI na posição suprarrenal (Figura 1), via veia jugular interna esquerda, pois durante a flebografia constatou-se trombose em veia cava inferior e veia renal direita.


Figura 1 - Posicionamento do filtro de veia cava inferior. FVCI=filtro de veia cava inferior



A partir desta data manteve-se anticoagulação profilática e não se percebeu mais nenhum episódio de sangramento exacerbado durante e após os desbridamentos e curativos até a paciente receber alta da unidade de terapia intensiva para a enfermaria.


DISCUSSÃO

A coagulopatia é frequentemente observada em pacientes queimados. Esta complicação ocorre após a injúria endotelial gerada pelo calor e assemelha-se às lesões decorrentes de sepse e após trauma grave. Caracteriza-se pelo comprometimento da atividade e integridade dos sistemas anticoagulantes naturais. A coagulopatia decorrente das queimaduras graves associa-se com aumento da morbidade e da mortalidade gerada pela trombose, complicações tromboembólicas e disfunção de múltiplos órgãos1,7, mesmo assim, ainda faltam recomendações consistentes para o tratamento em pacientes com queimaduras graves2,6.

A coagulopatia precoce possivelmente decorre da hemodiluição gerada pela infusão de fluidos associada à hipotermia determinada pelas queimaduras extensas, além da ativação da cascata da coagulação pela resposta inflamatória sistêmica e dano endotelial7.

Queimaduras requerem múltiplas cirurgias, cateteres de longa permanência e imobilizações prolongadas, que, associadas à estase venosa, hipercoagulabilidade e lesão endotelial, podem causar trombose venosa profunda8. O FVCI pode ser uma alternativa nos casos de queimaduras que necessitam desbridamentos suscetíveis à exacerbação do sangramento gerado pela terapia com anticoagulantes em dose plena3,6.

As queimaduras extensas e profundas resultam em mais lesões endoteliais, que ocasionam alguns mecanismos fisiopatológicos como a inflamação sistêmica e subsequente resposta inflamatória, liberação de citocinas pró-inflamatórias4,6, hipoperfusão tecidual, hipotermia por evaporação nas áreas não epitelizadas, que aumentam a incidência de coagulopatia nos grandes queimados2,7.

Mesmo assim, não há diretrizes ou recomendações bem definidas de ações para o tratamento desses problemas na coagulação dos pacientes grandes queimados. Embora se reconheça claramente a importância do diagnóstico e tratamento, a minoria das unidades de queimados implementam algoritmos específicos para orientar essa gestão9.

As queimaduras geram fatores que aumentam o risco de desenvolvimento de TVP, que tem sua patogênese na injúria endotelial, estase venosa e hipercoagulabilidade. Os riscos adicionais são a porcentagem de SCQ, duração de internamento, infecções e transfusões sanguíneas e a presença de acesso venoso profundo, como nesse relato, em que todos esses fatores estavam presentes no caso descrito.

A incidência de TVP em queimados é de 0,61%, mas dobra para 1,2% quando o paciente necessita internamento em UTI ou quando a SCQ é maior que I0%1,10. A profilaxia para trombose venosa profunda pode reduzir as complicações tromboembólicas, porém, aumenta as chances de sangramento8. Os parâmetros de avaliação da coagulação podem ser normais, mas o estado de hipercoagulabilidade durante o internamento se evidencia pelo aumento dos níveis de fibrinogênio, proteína C, proteína S e antitrombina III1,11.

O risco para TVP aumenta quando se utiliza cateter venoso femoral e recorrência de sepse12. Queimaduras extensas e a necessidade de internamento em UTI devem ser considerados para a utilização precoce da profilaxia de TVP utilizando métodos mecânicos e farmacológicos. Os que têm 40-59% de SCQ possuem os maiores riscos para TVP e TEP2,10 e a anticoagulação profilática é a terapia de escolha para prevenção destes acontecimentos1, embora se saiba que existem riscos associados à própria profilaxia como sangramentos e trombocitopenia2,11.

A incidência estimada de TEV em queimaduras de 50% alcança 2,4% e resulta em morbidade e mortalidade significativas para pacientes queimados, com a maioria das mortes por embolia pulmonar ocorrendo poucas horas após o diagnóstico12. O TEP pode ser fatal em 25% dos pacientes, assim a inserção do filtro do FVCI deve ser considerada, pois sua função é capturar e impedir que o êmbolo alcance e embolize as artérias pulmonares2.

A principal indicação para o uso de FVC é o risco de sangramento, assim como a existência de sangramento durante o tratamento13, como a paciente do presente relato, que possuía alto risco para TVP devido à grande SCQ, longo tempo de internamento e utilização de cateteres femorais, além de ter apresentado sangramentos intensos durante desbridamentos devido ao uso de anticoagulação plena para tratamento do TVP corroborando a necessidade da instalação do FVCI para prevenção do TEP.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

As queimaduras extensas e profundas estão associadas aos fatores que aumentam o risco de ocorrência de complicações trombogênicas, como: internamento prolongado, múltiplos procedimentos, hipercoagulabilidade, estase venosa e a lesão endotelial. Há necessidade de mais estudos que possam orientar protocolos de profilaxia e tratamento da TVP além da prevenção do TEP. A intenção deste relato é demonstrar que a instalação do FVCI pode ser uma alternativa terapêutica em grandes queimados com TVP na impossibilidade de anticoagulação plena, pois permitiu a continuidade dos cuidados habituais das áreas queimadas, prevenindo o TEP sem aumentar o risco de sangramento.


REFERÊNCIAS

1. Padua GAC, Nascimento JM, Quadrado ALD, Perrone RP Silva Junior SC. Epidemiologia dos pacientes vítimas de queimaduras internados no Serviço de Cirurgia Plástica e Queimados da Santa Casa de Misericórdia de Santos. Rev Bras Cir Plást. 2017;32(4):550-5.

2. Giordani AT, Sonobe HM, Guarini G, Stadler DV. Complicações em pacientes queimados: revisão integrativa. Rev Gest Saúde. 2016;7(2):535-48.

3. Martins VR. Manejo medicamentoso do paciente queimado: uma revisão da literatura [Monografia de Conclusão de Curso]. Ceilândia: Universidade de Brasília, Faculdade de Ceilândia; 2019. 49 p.

4. Fernandes CJCS, Alves Júnior JL, Gavilanes F, Prada LF, Morinaga LK, Souza R. Os novos anticoagulantes no tratamento do tromboembolismo venoso. J Bras Pneumol. 2016;42(2):146-54.

5. Tomaselli GR Mahaffey KW Cuker A, Dobesh PP Doherty JU, Eikelboom JW et al. 2017 ACC Expert Consensus Decision Pathway on Management of Bleeding in Patients on Oral Anticoagulants: A Report of the American College of Cardiology Task Force on Expert Consensus Decision Pathways. J Am Coll Cardiol. 2017;70(24):3042-67.

6. Lavrentieva A. Coagulopathy in burn patients: one part of a deadly trio. Burns. 2015;41(3):419-20.

7. Glas GJ, Levi M, Schultz MJ. Coagulopathy and its management in patients with severe burns. J Thromb Haemost 2016;14(5):865-74.

8. Li Q, Ba T, Wang LF, Chen Q, Li F, Xue Y. Stratification of venous thromboembolism risk in burn patients by Caprini score. Burns 2019;45(1):140-5.

9. Depetris N, Stella M, Berardino M, Lavrentieva A. Coagulopathy in burn patients - an international survey. Ann Burns Fire Disasters. 2016;28:151.

10. Pannucci CJ, Osborne NH, Wahl WL. Venous thromboembolism in thermally injured patients: analysis of the National Burn Repository. J Burn Care Res. 2011;32(1):6-12.

11. Pannucci CJ, Obi AT, Timmins BH, Cochran AL. Venous Thromboembolism in Patients with Thermal Injury: A Review of Risk Assessment Tools and Current Knowledge on the Effectiveness and Risks of Mechanical and Chemical Prophylaxis. Clin Plastic Surg. 2017;44(3):573-81.

12. Sikora S, Papp A. Venous thromboembolism in burn patients is not prevented by che-moprophylaxis. Burns. 2017;43(6):1330-4.

13. Yamashita Y, Unoki T, Takagi D, Hamatani Y, Ishii M, Iguchi M, et al. Indications, applications, and outcomes of inferior vena cava filters for venous thromboembolism in Japanese patients. Heart Vessels. 2016;31(7):1084-90.









Recebido em 23 de Junho de 2020.
Aceito em 14 de Setembro de 2020.

Local de realização do trabalho: Faculdade Evangélica Mackenzie do Paraná, Curitiba, PR, Brasil.

Conflito de interesses: Os autores declaram não haver.


© 2024 Todos os Direitos Reservados