806
Visualizações
Acesso aberto Revisado por pares
Relato de Caso

Manejo da Necrólise Epidérmica Tóxica em unidade de queimados: Relato de caso

Management of Toxic Epidermal Necrolysis in burn units: A case report

Juliana Elvira Herdy Guerra Ávila1; José Adorno2; Paulo Victor Rabelo Barbosa3; Matheus Castro Lima Vieira4; Raissa Habka Cariello5

RESUMO

INTRODUÇÃO: A necrólise epidérmica tóxica representa entidade desafiadora desde a suspeita e formulação de sua causalidade até o tratamento. As associações entre sua raridade e a escassez de centros especializados na abordagem contribuem para a manutenção de elevadas taxas de mortalidade. O tratamento é interdisciplinar e envolve suporte semelhante ao que é feito para grandes queimados, assim melhor realizado nestas unidades.
RELATO DE CASO: E.M.S., masculino, 42 anos, portador de epilepsia, com crises tônico-clônicas generalizadas, medicado com fenitoína em Unidade de Pronto-Atendimento. Desenvolveu quadro mucocutâneo de lesões eritematobolhosas difusas em 40% da superfície corporal. Diagnosticado com necrólise epidérmica tóxica e encaminhado à Unidade de Queimados do Hospital Regional da Asa Norte recebeu tratamento especializado. Substituída a medicação anticonvulsivante implicada no surgimento do quadro cutâneo, obteve-se o controle das crises e a melhora do estado geral. Tratado com curativos contendo prata de liberação prolongada, evoluiu com melhora, reestabelecimento nutricional e reepitelização de todas as feridas, tendo recebido alta hospitalar com recuperação completa das lesões.
CONCLUSÃO: O tratamento inicial constitui-se em hospitalização, isolamento reverso, suspensão imediata do agente causal e cuidados intensivos interdisciplinares. O pronto reconhecimento do agente causal influencia fortemente no prognóstico da doença. Considerando o potencial de gravidade e os altos níveis de morbimortalidade, é importante disseminar o conhecimento da necrólise epidérmica tóxica entre os profissionais de saúde, dando ênfase à importância de seu reconhecimento, principais etiologias e abordagem interdisciplinar.

Palavras-chave: Síndrome de Stevens-Johnson. Unidade de Queimados. Efeitos Colaterais e Reações Adversas Relacionados a Medicamentos.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Toxic epidermal necrolysis represents nowadays a defying nosological entity, from its presumption and causality to its treatment. The association between its rare incidence and the scarcity of centers specialized in its approach contribute to the maintenance of high mortality rates. Treatment of toxic epidermal necrolysis is interdisciplinar/ and involves clinical support similar to a severe burn, thus being better conducted in specialized centers.
CASE REPORT: E.M.S., male, 42 years old, with a previous diagnosis of epilepsy, presenting generalized tonic-clonic seizures, medicated with phenytoin in an emergency care unit. He subsequently developed diffuse bullous and erythematous mucocutaneous lesions in 40% of the body surface. Diagnosis of toxic epidermal necrolysis was made and the patient was transferred to a Burn Unit, where he was submitted to an interdisciplinar/ specialized treatment. The anticonvulsant drug implied on the development of the cutaneous manifestations was suspended, obtaining control of the seizures and subsequent regression of the clinical condition. The dressing of the lesions was done with slowly release silver Patient evolved with progressive recovery, nutritional gain, and reepithelization of the lesions, de-hospitalized with complete resolution of lesions.
CONCLUSION: Initial treatment of toxic epidermal necrolysis, constitutes in hospitalization and reverse isolation, immediate suspension of the causal agent, and interdisciplinary intensive care.

Keywords: Stevens-Johnson Syndrome. Burn Units. Drug-Related Side Effects and Adverse Reactions.

INTRODUÇÃO

A síndrome de Steven-Johnson (SSJ) e a necrólise epidérmica tóxica (NET) estão inseridas no leque das doenças mucocutâneas agudas e ameaçadoras à vida, tendo como gatilho principal os medicamentos1. As taxas de mortalidade variam entre 25 e 50%, dependendo de fatores como idade e superfície corporal acometida. Observa-se menor incidência e gravidade na população pediátrica em comparação a outros grupos etários2.

Entre os medicamentos mais associados, estão as sulfonamidas, os anti-inflamatórios não esteroidais, alguns antibióticos (quinolonas, cefalosporinas e penicilinas), anticonvulsivantes (principalmente difenil-hidantoína e barbitúricos) e alopurinol3. Outras causas apontadas seriam infecções virais, vacinações, radioterapia, linfomas, doença do enxerto versus hospedeiro e infecção pelo HIV4. A fisiopatologia decorre da morte de queratinócitos, com desprendimento da junção dermoepidérmica e das junções intercelulares das mucosas, resultando na formação de bolhas e descamação5.

As lesões apresentam curso previsível iniciando como máculas, eritematoacinzentadas ou purpúricas, com limites imprecisos e tendência à confluência. O tempo de surgimento após a exposição varia entre horas a dias. O padrão de apresentação da SSJ e da NET é semelhante, dificultando uma diferenciação precisa e originando a sobreposição SSJ-NET. A SSJ se caracteriza por acometimento de até 10% da superfície corporal, enquanto a NET envolve mais de 30% e é acompanhada de grande comprometimento sistêmico6. Manifestações gerais como febre, ardência ocular, linfoadenopatia e citopenia são frequentes. Pode haver ainda cardite, colite, nefrite, hepatite, disfagia, dispneia, hematoquezia e síndrome do desconforto respiratório do adulto (25% dos pacientes com NET apresentam o trato respiratório acometido)1.

Mais de 90% dos pacientes apresentam envolvimento mucoso, sendo as manifestações mais frequentes: conjuntivite, pseudomembrana e erosões corneais, com evolução para sequelas graves e até amaurose1. O fígado é o órgão mais acometido e sua falência responde por uma mortalidade aproximada de 5 a 10% dos pacientes7. Observa-se disfunção renal em 14,9% dos pacientes, sendo que 23,2% cursam com hematúria e 27,9% necessitam fazer hemodiálise8.

O tratamento deve ser realizado em centros especializados, como Unidades de Queimados, já que envolve cuidado multiprofissional, abordagem a lesões cutâneas extensas, controle de danos sistêmicos, suporte hidroeletrolítico, monitoramento de funções vitais, quadros infecciosos secundários e aporte nutricional.

Considerando a letalidade, o manejo consiste em detecção precoce e suspensão rápida do agente causador. Deve ser iniciado prontamente suporte nutricional, hidratação, reposição de eletrólitos, controle da dor e vigilância infecciosa9. O tratamento precoce e o acompanhamento em centros especializados resulta em queda significativa da mortalidade5,10.

Apesar de não haver consenso, alguns estudos avaliaram a utilização de imunossupressores e imunomoduladores, defendendo sua capacidade de reduzir a progressão da doença e o tempo de internação. O mecanismo atribuído à imunoglobulina baseia-se no seu efeito em bloquear a apoptose dos queratinócitos, além de outros benefícios como remissão precoce, mínimos efeitos colaterais e melhora da sobrevida1.

O uso de corticosteroides é controverso, porém há relatos que evidenciam benefícios no uso de doses altas em quadros incipientes, sendo contraindicados na fase avançada da doença, por considerar-se a mortalidade relacionada ao elevado risco de infecção e sepse4. Há também estudos que defendem o benefício de imunossupressores, como a ciclosporina, plasmaférese e imunoglobulina intravenosa na fase inicial3,4.

Em relação à plasmaférese, estudos demonstraram seu benefício na melhora clínica e redução no tempo de internação em UTI. Algumas das maiores dificuldades na disseminação desta terapêutica são os elevados custos e os riscos inerentes à terapia transfusional12.

O objetivo deste estudo, realizado por meio de um Relato de Caso, é demonstrar a importância do reconhecimento precoce e manejo interdisciplinar em Unidade especializada, com um quadro com evolução favorável acompanhado na Unidade de Queimados do Hospital Regional da Asa Norte (HRAN), Brasília, DF O trabalho foi realizado utilizando-se dados de prontuário eletrônico, com base nos princípios éticos da pesquisa, após elaboração de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, assinado pelo paciente, autorização documentada pela instituição e aprovação pelo Comitê de Ética Institucional.


RELATO DE CASO

E.M.S., masculino, 42 anos, procedente de São Sebastião, DF, previamente epilético, sem acompanhamento regular, em uso de fenobarbital 100 mg/dia. Deu entrada na Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) com crises tônico-clônico generalizadas. Medicado com diazepam endovenoso (EV) sem resposta satisfatória, e posteriormente com fenitoína (EV), obteve controle das crises. Não apresentava relato de alergias medicamentosas prévias.

Nas horas seguintes iniciou quadro cutâneo súbito, com lesões bolhosas em tronco e membros, que rapidamente pioraram e se estenderam para face e região genital, acometendo mucosas. Diante da hipótese de reação medicamentosa, foi suspensa a fenitoína e iniciada hidrocortisona endovenosa (EV). As lesões evoluíram com piora, que se associou à queda do estado geral, astenia, hiporexia e desidratação. Com comprometimento de cerca de 40% da superfície corporal, foi diagnosticado com NET e encaminhado à Unidade de Queimados do Hospital Regional da Asa Norte (HRAN).

À admissão, apresentava lesões bolhosas generalizadas e comprometimento mucoso oral, ocular e genital, além de alterações no hemograma e provas de reação inflamatória, compatíveis com o envolvimento sistêmico presente no quadro. Em revisão de prontuário, apresentava registro de quadro alérgico semelhante três meses antes, porém com comprometimento de menor área corporal e sem repercussão sistêmica. Na época recebeu tratamento de suporte com corticoterapia EV por curto período e evoluiu com melhora sem complicações.

Na Unidade de Queimados foi abordado precocemente com suspensão do provável agente causal (fenitoína), hidratação, analgesia e suporte interdisciplinar. O quadro epilético foi controlado com fenobarbital e as lesões cobertas por curativos contendo prata de liberação prolongada.

Logo após a instituição do tratamento, as lesões começaram a involuir, evidenciando diminuição do processo inflamatório local, com formação de pequenas crostas e sinais precoces de reepitelização. Progressivamente, evoluiu também com melhora dos demais sintomas, reestabelecimento nutricional e reepitelização completa após 14 dias. Os exames laboratoriais evidenciaram melhora gradativa (hemograma e provas inflamatórias).

Recebeu alta hospitalar em bom estado geral, apresentando cicatrizes planas discrômicas nas áreas correspondentes. Houve recuperação completa das lesões oculares, sem sequelas visuais. Foi orientado a informar rigorosamente aos serviços de saúde sobre o quadro alérgico prévio em eventuais atendimentos, bem como a manter seguimento ambulatorial para tratamento de cicatrizes (manchas hipercrômicas).


DISCUSSÃO

As crises convulsivas representam ameaça à vida, uma vez que podem evoluir com insuficiência respiratória e sequelas neurológicas importantes, decorrentes de hipóxia encefálica. O tratamento inicial é feito principalmente com benzodiazepínicos, medicamentos capazes de promover remissão das crises em até 80% dos casos13. Apesar da grande eficácia inicial nas crises, estas drogas não são capazes de prevenir recorrências, sendo muitas vezes necessário lançar mão de outras classes de anticonvulsivantes ainda no primeiro atendimento13.

Estudos estimam que o desenvolvimento da NET está relacionado ao uso de medicações em 90% dos casos3. As drogas relacionadas com maior frequência são: sulfonamidas, AINE, derivados de pirazolona (fenilbutazona, dipirona), alopurinol, anticonvulsivantes (fenitoína, carbamazepina, ácido valproico, barbitúricos), antibióticos (sulfametoxazol/trimetropim, penicilinas, quinolonas, cefalosporinas, macrolídeos), sertralina, corticosteroides e antineoplásicos.

Outras causas hipotéticas são: infecção pelo vírus da dengue e pelo HIV intoxicação exógena e reação pós-transplante4. Contudo, em uma minoria de casos o fator desencadeante é criptogênico. Ressalta-se a predisposição genética, relacionada ao Complexo Maior de Histocompatibilidade e determinados genes HLA4.

O pronto reconhecimento do agente causal e seu afastamento, especialmente no caso de medicamentos, influencia drasticamente o prognóstico da doença14.

Estudo publicado pela universidade de Rhode em 2018 aponta que os antiepilépticos elevam em nove vezes o risco de NET quando comparados a agentes não epilépticos. As drogas mais frequentemente implicadas mostraram-se capazes de elevar o risco de desenvolvimento desta condição em até 20 vezes e dentre elas podemos citar: fenitoína, lamotrigina, carbamazepina, zonisamide, rufinamide e clonazepate15.

O acometimento cutaneomucoso da NET é caracterizado notadamente por apoptose de queratinócitos com desprendimento a nível da junção dermoepidérmica, resultando em uma síndrome bolhosa com lesões análogas a uma queimadura. Diante disso, a transferência para um centro especializado de cuidado é medida preconizada no atendimento destes pacientes14.

O tratamento inicial, de forma análoga ao dos grandes queimados, constitui-se em hospitalização e isolamento, suspensão imediata do agente causal, cuidados intensivos com proteção de vias aéreas, fluidoterapia para manutenção do equilíbrio hidroeletrolítico e vigilância contínua. A terapêutica envolvendo medicamentos específicos como corticosteroides e imunossupressores ainda carece de ensaios clínicos randomizados e da sistematização de condutas baseadas em evidências14.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando o potencial de gravidade e os altos níveis de morbimortalidade, é importante disseminar o conhecimento e, com ênfase na importância do reconhecimento precoce, principais etiologias e abordagem interdisciplinar. O tratamento adequado em unidade especializada, como pudemos observar no caso relatado, é determinante para promover a melhora do paciente e em boa parte dos casos prevenir sequelas inestéticas e funcionais de grande comprometimento.


AGRADECIMENTO

Agradecemos a toda a Equipe da Unidade de Queimados do HRAN, profissionais e pacientes.


REFERÊNCIAS

1. Meira Júnior JD, Souza JT, Toniollo CF, Stolf HO. Necrólise epidérmica tóxica/síndro-me de Stevens Johnson: emergência em dermatologia pediátrica. Diagn Tratamento. 2015;20(1):8-13.

2. Sukasem C, Katsila T, Tempark T, Patrinos GP, Chantratita W. Drug-induced Stevens-Johnson syndrome and toxic epidermal necrolysis call for optimum patient stratification and theranostics via pharmacogenomics. Annu Rev Genomics Hum Genet. 2018;19:329-53.

3. Cho YT, Chu CY Treatments for severe cutaneous adverse reactions. J Immunol Res. 2017;2017:1503709.

4. Estrella-Alonso A, Aramburu JA, González-Ruiz MY, Cachafeiro L, Sánchez MS, Loren-te JA. Toxic epidermal necrolysis: a paradigm of critical illness. Rev Bras Ter Intensiva. 2017;29(4):499-508.

5. Papp A, Sikora S, Evans M, Song D, Kirchhof M, Miliszewski M, et al. Treatment of toxic epidermal necrolysis by a multidisciplinary team. A review of literature and treatment results. Burns. 2018;44(4):807-15.

6. Woolum JA, Bailey AM, Baum RA, Metts EL. A Review of the Management of Stevens-Johnson Syndrome and Toxic Epidermal Necrolysis. Adv Emerg Nurs J. 2019;41(1):56-64.

7. Martinez-Cabriales SA, Shear NH, Gonzalez-Moreno EI. Liver involvement in the drug reaction, eosinophilia, and systemic symptoms syndrome. World J Clin Cases. 2019;7(6):705-16.

8. Wang J, Cheng XY, Lu Y, Zhou BR. A case report of toxic epidermal necrolysis associa-ted with AZD-9291. Drug Des Devel Ther. 2018;12:2163-7.

9. Yamane Y, Matsukura S, Watanabe Y, Yamaguchi Y, Nakamura K, Kambara T, et al. Re-trospective analysis of Stevens-Johnson syndrome and toxic epidermal necrolysis in 87 Japanese patients - Treatment and outcome. Allergol Int. 2016;65(1)74-81.

10. Roujeau JC, Mockenhaupt M, Guillaume JC, Revuz J. New Evidence Supporting Cyclos-porine Efficacy in Epidermal Necrolysis. J Invest Dermatol. 2017;137(10):2047-9.

11. Carrasquillo OY, Santiago-Vazquez M, Cardona R, Cruz-Manzano M, Figueroa LD. Stevens-Johnson syndrome and toxic epidermal necrolysis: a retrospective descriptive study. Int J Dermatol. 2019;58(11):1293-9.

12. Han F, Zhang J, Guo Q, Feng Y, Gao Y, Guo L, et al. Successful treatment of toxic epi-dermal necrolysis using plasmapheresis: a prospective observational study. J Crit Care. 2017;42:65-8.

13. Bank AM, Bazil CW. Emergency management of epilepsy and seizures. Semin Neurol. 2019;39(1):73-81.

14. Wong A, Malvestiti AA, Hafner MFS. Stevens-Johnson syndrome and toxic epidermal necrolysis: a review. Rev Assoc Med Bras (1992). 2016;62(5):468-73.

15. Borrelli EP, Lee EY, Descoteaux AM, Kogut SJ, Caffrey AR. Stevens-Johnson syndrome and toxic epidermal necrolysis with antiepileptic drugs: An analysis of the US Food and Drug Administration Adverse Event Reporting System. Epilepsia. 2018;59(12):2318-24.









Recebido em 19 de Março de 2020.
Aceito em 3 de Junho de 2020.

Local de realização do trabalho: Hospital Regional da Asa Norte, Brasília, DF, Brasil.

Conflito de interesses: Os autores declaram nao haver.


© 2024 Todos os Direitos Reservados