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Artigo de Revisao

Mulheres queimadas: uma revisão integrativa de publicações nacionais

Burned women: an integrative review of national publications

Simoni da Silva Salamoni1; Lilian Dias Bernardo Massa2

RESUMO

OBJETIVO: O objetivo do estudo foi analisar a produçao científica nacional referente ao enfoque às mulheres queimadas, identificando a atuaçao profissional, abordagens, linha de cuidado e desfechos que possam contribuir para a melhoria da saúde desta populaçao.
MÉTODO: Foram consultadas as fontes de informaçoes SciELO e LILACS e incluídos artigos nacionais publicados nos últimos 10 anos, sendo o objeto de estudo as mulheres queimadas. Foram identificadas 40 publicaçoes. Após a aplicaçao dos critérios de inclusao e exclusao, a amostra final foi composta por 15 artigos.
RESULTADOS: Os resultados mostram que as pesquisas se concentram em identificar o perfil epidemiológico das queimaduras, com pouco enfoque nas técnicas de intervençao, nos processos de reabilitaçao e na compreensao do percurso vivido pelas mulheres queimadas. Houve predomínio de queimaduras do tipo térmico, sendo o álcool o principal agente etiológico. As campanhas educativas sao as melhores estratégias para a prevençao desses eventos e para maior conscientizaçao da populaçao acerca dos riscos advindos da queimadura.
CONCLUSAO: As marcas das queimaduras impactam na imagem corporal e nos aspectos psicoemocionais das mulheres. Evidencia-se, assim, a necessidade de políticas públicas direcionadas à prevençao de queimaduras, bem como a relevância de açoes específicas para as mulheres após a alta, visando o cuidado com as lesoes ou até mesmo sequelas presentes após o tratamento.

Palavras-chave: Queimaduras. Mulheres. Imagem Corporal. Cicatriz.

ABSTRACT

OBJECTIVE: The objective of the study was to analyze the national scientific production regarding the approach to burned women, identifying the professional performance, approaches, care line and outcomes that may contribute to the improvement of the health of these women.
METHODS: The sources of SciELO and LILACS information were consulted and national articles published in the last 10 years were included, and women were burned. A total of 40 publications were identified. After applying the inclusion and exclusion criteria, the final sample consisted of 15 articles.
RESULTS: The results show that the research focuses on identifying the epidemiological profile of burns, with little focus on intervention techniques, rehabilitation processes and the understanding of the pathway experienced by burned women. There was a predominance of thermal type burns, with alcohol being the main etiological agent. The educational campaigns appear as the best recommendations for the prevention of these events and for greater awareness of the population about the risks of the burn.
CONCLUSION: Burn marks have an impact on the body image and the psycho-emotional aspects of women. Thus, the need for public policies aimed at the prevention of burns, as well as the relevance of specific actions for women, after discharge, aiming at the care of the lesions or even the sequelae present after the treatment is evidenced.

Keywords: Burns. Women. Body Image. Cicatrix.

INTRODUÇAO

Segundo o Sistema de Informaçoes Hospitalares do SUS (SIH/ SUS), o número de internaçoes anuais por queimaduras, no período de janeiro de 2010 a fevereiro de 2016, entre mulheres de 20 anos a 80 anos, atingiu um total de 33.378 casos notificados1. Os eventos para mulheres adultas estao associados a várias situaçoes domésticas consideradas acidentais (preparo de refeiçoes, riscos diversos na cozinha, acidentes com o botijao de gás, entre outros) e, ocasionalmente, tentativas de suicídio2.

A literatura internacional ainda aponta para as queimaduras em mulheres como uma tentativa de homicídio3. O número disponibilizado pelo governo brasileiro corresponde às mulheres que foram internadas, mas há ainda aquelas que nao procuraram pela internaçao ou casos nao notificados.

A queimadura requer um tratamento imediato devido a sua urgência4,5. Esse evento está relacionado a períodos prolongados de hospitalizaçao, vivências de dor, edema e rigidez das áreas afetadas e possível comprometimento das funçoes vitais. O impacto nao se restringe a danos físicos, podendo comprometer os aspectos psicoemocionais e relacionais5.

Esse tipo de lesao é caracterizado como um dos mais graves e traumáticos, pois incapacita, desfigura e, como já dito e aqui reafirma- se, necessita de um longo tratamento terapêutico. Ao pesquisar esse tema em mulheres, constatou que a violência doméstica se constituía como uma das causas predominantes. Nesse contexto, a vítima vivencia um valor ainda mais negativo às marcas e cicatrizes deixadas pelo agressor porque interfere, além da imagem corporal, na autoestima, no cuidado ao outro e na saúde mental6.

Estudo realizado na regiao Sul do Brasil investigou a relaçao entre queimaduras e as tentativas de suicídio, por meio do uso de fogo e seus aceleradores7. A relaçao da história de vida antes da prática de suicídio é um dos fatores desencadeadores desse comportamento autodestrutivo, representado por: histórias de violência, fragilidade nas relaçoes interpessoais, dificuldades individuais, sofrimento psíquico, distúrbios mentais, entre outros. No entanto, muitas das que realizaram essa prática nao reconheciam a gravidade do trauma e o viam como uma possibilidade de saída dos conflitos de suas vidas7.

Em consonância com estes estudos, na India foram identificadas as relaçoes entre queimaduras e histórias de violência, tentativas de homicídio ou automutilaçao como uma forma convencer o parceiro a mudar seus hábitos violentos (parar de brigar, beber e/ou bater)3. Os autores destacam, ainda, fatores ambientais e socioeconômicos como promotores dos eventos de queimaduras, tais como ambientes pequenos (cozinha junto com quarto) e problemas na manutençao dos equipamentos de gás e fogao que podem aumentar o risco de acidentes3.

No que se refere às mulheres queimadas por violência doméstica, verifica-se a existência de políticas públicas direcionadas a esse grupo específico, com investimentos para as açoes de saúde fundadas na promoçao, prevençao, assistência e recuperaçao da saúde, nos diferentes níveis de atençao8.

Entretanto, a análise política ainda mostra que grande parte das mulheres agredidas nao tem acesso a esse tipo de atençao, mesmo considerando a violência doméstica como um grave problema de saúde pública, um dos principais indicadores da discriminaçao de gênero e fator determinante para a construçao de novas políticas públicas8,9. No entanto, para os demais casos de queimaduras nao sao direcionadas açoes prioritárias no campo da atençao à saúde. A única açao preventiva, realizada pelos governos locais, para esses outros casos de queimadura, é o dia da "Luta contra as Queimaduras", em 6 de junho, como uma estratégia educativa para eliminar os riscos mais comuns associados a esse evento.

Considerando o número elevado de queimaduras nesse gênero e os impactos que esse evento causa na subjetividade e na capacidade funcional, questiona-se: Como se dá a abordagem a essa populaçao e qual o efeito das açoes na proteçao da saúde dessas mulheres? Para tal, este artigo propoe analisar a produçao científica nacional das mulheres queimadas, identificando as linhas de cuidado e desfechos que possam contribuir para a melhoria da saúde destas mulheres.


MÉTODO

Trata-se de uma revisao de literatura do tipo integrativa10. Devido ao reduzido número de artigos nacionais, optou-se por uma busca mais abrangente das publicaçoes, com um recorte temporal de 10 anos (2006 a 2016). Foram eleitas as fontes de informaçao Scientific Electronic Library Online (SciELO) e Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), por se constituírem como as principais fontes latino-americanas do campo da saúde com o maior número de publicaçoes nacionais. As buscas ocorreram no mês de abril de 2016.

Nos critérios de seleçao consideraram-se os artigos que abordam: 1) mulheres com queimadura; 2) artigos do idioma português; 3) texto completo; 4) artigos dentro do recorte temporal; 5) artigos com o foco central na queimadura. Foram excluídos os artigos: 1) de outros idiomas; 2) artigos que tinham como foco central queimaduras em outro público-alvo, tais como em homens ou crianças 3) artigos que abordam queimaduras leves por exposiçao ao sol; 4) anais, editoriais e outros textos que nao apresentaram a pesquisa completa; e, 5) artigos de revisao. Para definiçao dos termos de busca, foi feita a consulta nos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS). Escolheram-se os descritores: "feminino" e "queimaduras", utilizando o operador booleano AND para a combinaçao dos descritores. Ainda foi feita a combinaçao do descritor "queimadura" com o termo de busca "mulher", usando o mesmo operador booleano. As estratégias construídas e as expressoes de busca com os resultados sao apresentadas no Quadro 1.




Foram identificados 40 artigos. Ao se retirar as duplicatas, permaneceram 38 artigos. Em seguida, foi feita a seleçao de títulos, resumos e idiomas para verificar se as publicaçoes atendiam aos critérios selecionados. Foram excluídos mais 21 artigos. Na seleçao por textos completos, das 17 publicaçoes científicas, duas foram excluídas, pois nao evidenciavam a queimadura em mulheres. Um artigo relatava um estudo de caso com ênfase no risco de combustao de um centro cirúrgico e o outro referia-se especificadamente ao tratamento de queimadura nos olhos. A amostra final foi constituída por 15 artigos.

Para análise e sistematizaçao dos dados obtidos, foi construído um formulário para organizaçao dos resultados, submetidos, entao, a um processo de categorizaçao temática. A análise descritiva foi feita considerando os profissionais que oferecem os cuidados, a abordagem dada à mulher queimada, os objetivos do estudo, desfechos, conclusoes e recomendaçoes.


RESULTADOS

A pesquisa é constituída por 15 artigos que estao caracterizados no Quadro 2, conforme o título do artigo, ano, autores, periódicos e profissoes envolvidas nas publicaçoes.




Observa-se a predominância de artigos no ano de 2014 (7 estudos, 46,7%), com publicaçoes, principalmente, na Revista Brasileira de Queimaduras (9 estudos). Quanto à autoria principal, predominou- se o profissional de Medicina (33,3%) e em seguida Enfermagem (26,6%). Os estudos contaram com a participaçao de outras profissoes, tais como: Psicologia, Terapia Ocupacional, Fisioterapia, Nutriçao e Serviço Social.

O Quadro 3 apresenta os objetivos dos estudos, foco das publicaçoes e os tipos de queimaduras abordados.




Do total dos artigos revisados, 12 (80%) direcionavam seus estudos para traçar o perfil epidemiológico das queimaduras, com o foco na análise das características de atendimento, perfil das pessoas queimadas ou fatores relacionados a esse evento, nos diferentes níveis de atençao à saúde. Um artigo direcionou seu estudo para analisar a violência doméstica, por meio de entrevistas semiestruturadas. Os dois artigos restantes investigaram: os aspectos emocionais vivenciados por mulheres vítimas da violência doméstica e os fatores relacionados ao processo de reabilitaçao pós-queimadura.

Em relaçao aos tipos de queimaduras abordados nas publicaçoes, evidencia-se o tipo térmico, presente em 13 estudos, sendo o álcool, líquidos superaquecidos ou superfície quente os principais agentes, entretanto, ainda houve artigos que abordaram as queimaduras químicas (n=5 estudos) e elétricas (n=4 estudos). Para identificaçao dos desenhos metodológicos, desfechos do estudo e recomendaçoes, elaborou-se o Quadro 4.




A partir do exposto, fica evidente que a maioria dos estudos sao do tipo descritivo, totalizando dez (66,6%) publicaçoes, o que era de se esperar devido ao foco predominante apresentado no estudo: o perfil epidemiológico. Ao verificar o objeto de estudo, os artigos eram destinados a investigar as mulheres ou analisar os prontuários. Referente aos estudos feitos com as mulheres, estes variaram de 2 a 315 participantes. No que se atribui aos prontuários, houve análise de 15 a 132 documentos. Apenas um artigo destinou-se ao estudo dos prontuários e coleta de informaçoes dos queimados (estudo nº 1).

Quanto aos desfechos dos estudos, os que tinham como foco o perfil dos pacientes com queimaduras, a maioria atribuiu dados ao gênero, idade, escolaridade, local, agente causal e superfície corporal atingida. Em virtude da temática do presente artigo, a maioria das pesquisas é relacionada ao gênero feminino, mas contém outros artigos que abordavam os dois gêneros.

Por terem sido excluídos os artigos direcionados à populaçao feminina infantil, a idade adulta foi a que mais prevaleceu em todos os artigos, embora alguns estudos contassem com idosos com queimaduras. Em relaçao à escolaridade, sete estudos investigaram o nível escolar da populaçao atendida, desvendando baixa escolaridade. Quanto à condiçao econômica, três estudos relatam esse aspecto, porém sem os valores quantitativos. Eles se referem a pessoas de baixa renda.

Em relaçao ao ambiente físico em que ocorreram as queimaduras, o domicílio foi o local de maior ocorrência dos casos, com o uso do álcool como principal agente causal. A superfície corporal atingida variou de 1% a 85%, em todos os graus de lesao.

Nos estudos que enfocam o tratamento (6 estudos), alguns se preocuparam com o tempo de internaçao, características do atendimento (ambulatorial/internaçao hospitalar), bem como a taxa de mortalidade, o tipo de cirurgia, se houve infecçoes e as principais sequelas prevalentes.

Nos estudos que abordam as infecçoes, seus percentis variaram de 12% a 54,4% e somente em um estudo foram apresentadas as sequelas: cicatriz hipertrófica e a brida cicatricial (estudo nº12). Em relaçao à taxa de mortalidade, um artigo nao apresentou o número de óbitos e, em outros estudos, a mortalidade mais elevada correspondeu a 45%, por tentativa de autoextermínio.

Nos estudos revisados, as principais recomendaçoes feitas sao em relaçao a campanhas/projetos educativos para a prevençao de acidentes domésticos, bem como a substituiçao do álcool líquido para a soluçao em gel. Há ainda aqueles que se preocuparam com recomendaçoes aos profissionais para melhor compreensao e suporte das vivências de sofrimento dos pacientes queimados. Ademais, houve um artigo que enfatizou a importância de realizar estudos para verificar os fatores que contribuem para a recuperaçao.


DISCUSSAO

A maioria dos estudos revisados é direcionada para análise do perfil epidemiológico. Estudos com esse foco sao importantes para analisar o cenário das condiçoes de vida, o processo de saúde e doença, bem como verificar outros fatores que predizem sobre o desenvolvimento da populaçao11. Por meio desses dados, é que se planejam açoes específicas para detecçao, prevençao e intervençao (estudo nº 15). Os estudos epidemiológicos também servem para identificar as prioridades de atençao à saúde, áreas que necessitam da vigilância epidemiológica, bem como para auxiliar na elaboraçao de novas políticas públicas12.

No que se refere aos métodos utilizados, o instrumento para a coleta de dados foi, em sua maioria, feito pela análise de prontuário. Essa fonte de dados é sujeita a diversas interpretaçoes13, pois retrata o paciente somente naquele momento e nem sempre as informaçoes contidas sao detalhadas sobre as dificuldades e intercorrências.

Apesar de só duas pesquisas serem de cunho qualitativo, seus resultados devem ser valorizados porque esse tipo de metodologia é adequado para resgatar as vivências de pessoas que sofreram queimaduras14. No estudo revisado nº 9, pela etnografia, foi possível identificar a questao de violência associada ao gênero, atrelada a momentos de dores e sofrimento, com impactos nas relaçoes familiares e na autoestima. Da mesma forma, o estudo nº 10, por meio de entrevistas semiestruturadas, identificou no cotidiano de duas pessoas queimadas, os aspectos positivos e negativos relacionados ao processo de reabilitaçao. O pensamento otimista, força de vontade e persistência relacionavam-se positivamente com a capacidade de lidar com a vida após a sobrevivência da queimadura. Já as mudanças físicas, estéticas e emocionais tinham um impacto negativo na conduçao de suas vidas pós-queimadura.

No pós-queimadura, verifica-se que o paciente queimado requer um tratamento delicado, pois adquire uma condiçao de saúde precária e muitas vezes instável, pelo comprometimento dos aspectos físicos e psicoemocionais do indivíduo, e por vivenciar alguns períodos de preocupaçao com a sobrevivência, além de momentos de tristeza profunda, depressao, ansiedade generalizada e estresse, bem como raiva e dependência até a recuperaçao total.

Diante disso, destaca-se a necessidade de uma rede de suporte, normalmente composta por profissionais de saúde, amigos e familiares, para estabelecer as relaçoes de apoio e compreensao daquele momento vivido pelo queimado. Nesse cuidado ressalta-se, ainda, a importância do manejo terapêutico correto para diminuir o estresse e o sofrimento do paciente, principalmente em momento de manipulaçao do paciente no banho, no pós-operatório de desbridamentos e enxertias, bem como nas limpezas das lesoes15.

Além disso, constata-se elevada administraçao medicamentosa e os cuidados intensivos durante a hospitalizaçao, na tentativa de diminuir o sofrimento do paciente14. Em contrapartida, um estudo realizado na India expoe uma oposta realidade que necessita ser repensada, por meio de políticas públicas, para garantir sucesso no tratamento dessas sobreviventes. Nesse país, o tratamento hospitalar é deficitário (equipamentos cirúrgicos inadequados) e os casos de queimaduras evoluem com prejuízos funcionais significativos, em que os sobreviventes apresentam como resultados limitaçoes devido a contraturas, deficiência na amplitude de movimento no local lesionado e diminuiçao da força muscular16, interferindo na independência e autonomia dos acometidos.

Se por um lado a permanência da mulher queimada por um tempo prolongado de internaçao contribui para sua sobrevida e cuidados de forma ininterrupta, por outro, os custos com as hospitalizaçoes sobrecarregam substancialmente os serviços de saúde. De acordo com Fonseca Filho et al.17, o tratamento de um paciente queimado pode ultrapassar R$ 1.500,00 por dia, em uma unidade de tratamento específica. No ano de 2000, no SUS, 4,4% das internaçoes foram devido à queimadura e, mesmo assim, os números de óbitos por ano, no Brasil, chegam ao número de 2.500 casos17. Esses dados já justificam, por si só, a criaçao de mais políticas direcionadas à prevençao de queimaduras para os territórios com maior acometimento desses eventos.

Outro dado relevante apresentado pelo perfil epidemiológico foi a relaçao da queimadura com o baixo nível de escolaridade dessas mulheres, bem como uma precária condiçao socioeconômica. De acordo com Cabulon et al.18, há uma relaçao com esse agravo de saúde ser mais frequente em países cujo nível socioeconômico é considerado baixo. Nesse sentido, acredita-se que o pouco acesso à informaçao pode levar a um uso incorreto de produtos com o poder altamente inflamável, podendo desencadear as queimaduras.

Além disso, a baixa condiçao para a manutençao dos utensílios domésticos, ou até mesmo o modo com o qual que estes equipamentos estao dispostos em casa (todos no mesmo cômodo) também contribuem para os casos de queimaduras acidentais. Nessas realidades, as açoes educativas constituiriam como uma estratégia recomendada para prevençao de tais agravos à saúde dessas mulheres.

Nesta revisao integrativa, as principais causas de queimaduras em mulheres estavam relacionadas a tentativas de suicídio (oito estudos), agressao (violência doméstica) (três estudos) e acidente doméstico (dois estudos). Os artigos que comparavam os gêneros, os homens se queimavam mais por acidentes de trabalho ou doméstico (seis estudos) e as mulheres por uma conduta de autolesao (cinco estudos).

A queimadura do tipo térmica foi a mais divulgada nesse estudo, o que difere do estudo retrospectivo realizado entre 1996 e 2013 em um hospital colombiano, que desvendou uma prevalência de 82% de queimaduras do tipo química, desencadeadas por motivos de violência, tema em que este país se destaca mundialmente19. Nesta revisao integrativa, o álcool em líquido foi o principal agente causador, estando presente em oito artigos.

É possível pensar que, na maioria das casas, esse produto esteja disponível para a limpeza e é altamente inflamável, o que aumenta o risco para acidentes e possíveis queimaduras. Além disso, é um produto de baixo custo e de fácil obtençao para a compra. Sendo assim, isso pode justificar a maior utilizaçao desse produto nos casos de queimaduras, independentemente delas serem premeditadas ou acidentais20.

Com o objetivo de diminuir as taxas de queimaduras no país, bem como dificultar o fácil acesso, a ANVISA editou a Resoluçao 46/2002, que proíbe a venda do álcool em líquido 96º INPM (porcentagem de álcool em peso ou grau alcoólico), que se caracteriza como um alto combustor. Essa mesma resoluçao permite a venda desta soluçao líquida com teor abaixo de 46º INPM.

Essa norma ainda destaca os benefícios do álcool em gel, permitido em todas as graduaçoes, pois a sua composiçao tem como característica a difícil conduçao/propagaçao do fogo, ou seja, nao deixa o fogo se espalhar com facilidade. Entretanto, a ANVISA adverte que muitos fabricantes conseguiram liminar na justiça para comercializarem o álcool líquido 96º INPM21, o que faz com que muitos estabelecimentos continuem comercializando sua venda e estando disponíveis em diversos domicílios.

Dos 15 artigos revisados, 11 expuseram a porcentagem ou a extensao da superfície corporal acometida. Observou-se uma variaçao de 1% a 85% das superfícies queimadas. Esse tipo de classificaçao é importante para verificar a gravidade dos casos22. Nos estudos revisados, nao é possível estabelecer um tipo de gravidade mais prevalente, pois as variaçoes de superfície corporal atingidas sao consideravelmente amplas. O que se verifica é que os artigos tratam de pessoas portadoras de queimaduras (casos leves) até os que têm risco eminente de morte (casos graves).

Ao analisar em que contextos ocorriam as queimaduras que nao se relacionavam a acidentes domésticos, os artigos revisados apontam como desencadeadores: os problemas familiares, a carência afetiva, os casamentos nao idealizados, os relacionamentos com violência, bem como transtornos mentais (depressao). No uso das queimaduras como tentativa de suicídio, quando explorados os motivos que levaram a esse ato, os estudos revelam que os principais problemas estavam vinculados à dependência financeira da mulher com os seus maridos, vícios do parceiro, à diferença de idade, pouca compreensao do parceiro, bigamia e falta de interesse na relaçao.

Alguns artigos ainda apontam que muitas mulheres diziam que, por meio de recordaçoes aflitivas (imagens, pensamentos e sonhos), reviviam o trauma e acrescentava ao sofrimento, vivências de culpa e insônia. Muitas afirmavam se sentirem solitárias e algumas declararam nao possuírem confiança e autoestima, e assim encararam o suicídio como a soluçao dos seus problemas, ou seja, uma fuga da situaçao de violência que estavam vivendo.

Dessa forma, compreende-se que embora o comportamento seja de autoimolaçao, muitos deles sao desencadeados devido à violência de gênero, bem como a capacidade de resoluçao de problemas dessas mulheres para lidarem com os conflitos vividos.

Na análise inicial dos objetivos dos estudos, somente um artigo abordava como tema central a questao da queimadura por conta violência doméstica, mas em muitos artigos esse tema aparece nao como a questao norteadora, mas como o maior desencadeador das queimaduras. Tal tema se constitui como uma das prioridades para a saúde pública no Brasil.

No âmbito nacional, o Mapa de Violência de 201523 apontou que os atendimentos registrados por violência doméstica (que acomete majoritariamente as mulheres), sexual e/ou outras violências, totalizaram um quantitativo de 223.796 vítimas. Destaca-se ainda que duas em cada três dessas vítimas (147.691) necessitaram de atençao médica devido à violência sofrida. Esses dados advindos do Sistema de Informaçao de Agravos e Notificaçoes (SINAN) reforçam a necessidade de se pensar em estratégias e combater todos os tipos de violência, entre elas as direcionadas ao gênero24.

Em um contexto de hierarquia e de submissao que muitas mulheres se inserem, favorável à violência de gênero, se fez necessária a implementaçao e/ou criaçao de políticas e açoes específicas para a proteçao dessas mulheres, bem como o planejamento de estratégias para promover a assistência e garantir os seus direitos. No entanto, essas açoes precisam, de fato, serem eficazes para a garantia dos direitos sociais já conquistados pelas legislaçoes, pois embora haja diretrizes que protejam e promovam o cuidado às mulheres, ainda se nota precária efetivaçao dessas açoes25.

Apesar de historicamente se ter registros de violência (que levam a queimaduras, feridas e outras marcas físicas e/ou psicológica), os governos só recentemente têm lutado - por meio de convençoes, conferências e elaboraçoes de políticas - para a estipulaçao de açoes para erradicar e/ou prevenir a violência, penalizar os eventos ocorridos e garantir o acesso à Justiça.

Nessa direçao, as açoes e serviços (unidades de saúde, delegacias de mulheres, Casa da Mulher Brasileira) sao implementados em locais estratégicos para atender a essa populaçao. Em suas práticas de açao, englobam-se as estratégias de reduçao da morbimortalidade feminina no Brasil, principalmente por causas evitáveis, como é o caso das queimaduras26.

Nesse panorama, a elaboraçao de projetos para o empoderamento dessas mulheres seria necessária, pois promoveria um melhor conhecimento e utilizaçao dos direitos já conquistados, bem como facilitaria a construçao de uma relaçao melhor no autocuidado frente às açoes que colocam em risco a sua integridade relacional e física.

A literatura aponta para a experiência exitosa na Nicarágua. Com resultados de grande destaque na América Central e Sul, esse país criou o programa "Eu confio em mim mesmo" a fim de promover a autoestima, educaçao, participaçao social e diminuiçao da ansiedade pós-trauma em indivíduos queimados. Em suas metas, destacam-se desfechos relacionados ao suporte emocional e no convívio social27, que influenciam positivamente na qualidade de vida do sobrevivente.

Em análise aos estudos direcionados ao processo interventivo, alguns artigos discorreram sobre o plano de tratamento, verificando os dados do processo cirúrgico, taxa de mortalidade, presença de infecçoes e as sequelas. Nesse sentido contempla-se a importância e a necessidade de publicaçoes que elenquem possibilidades e técnicas para o tratamento e a recuperaçao, bem como evitem possíveis danos à saúde e à capacidade funcional, tais como as infecçoes e sequelas. Assim, o acompanhamento contínuo dessas pesquisas possibilita uma prática atualizada e coerente, com base em evidências científicas que contribuirao para a melhor tomada de decisao das terapêuticas28.

Quanto às recomendaçoes, quatro estudos atentaram para a importância das campanhas educativas, pois a viam como um meio de divulgaçao de informaçoes e um instrumento de educaçao, que visa à conscientizaçao sobre comportamentos saudáveis ou promotores de saúde, a fim de alcançar a adoçao desses comportamentos.

Uma vez que muitas das enfermidades e doenças estao ligadas ao estilo de vida, nessa prática a comunicaçao em massa é uma ferramenta capaz de favorecer essa mudança de comportamento, pois é um meio que está mais acessível à populaçao. De acordo com o estudo de Alves e Mello29, o impacto dessas campanhas é positivo, mas as açoes educativas nao se restringem ao repasse de informaçoes. Segundo os mesmos autores, a compreensao e educaçao estao atreladas e fazem parte do elemento central no processo de mudança de comportamento.

Nos Estados Unidos, há relatos de experiências em as mídias sociais foram utilizadas como uma ferramenta de apoio social, de trocas de informaçao e, em casos de violência, esse meio buscava encorajar as denúncias, com preservaçao da integridade dos envolvidos30.


CONCLUSAO

Este estudo contribui para identificaçao do perfil das mulheres queimadas, dos agentes desencadeadores do evento e de algumas técnicas de assistência utilizadas nas redes de atençao à saúde da mulher queimada. Nesta revisao, poucas publicaçoes foram direcionadas para a investigaçao da queimadura nas práticas de suicídio da populaçao feminina. Recomendam-se investimentos nessas pesquisas para o entendimento dos comportamentos e possibilidades de prevençao para a ocorrência do suicídio.

Destacam-se as pesquisas qualitativas que se propoem a compreender, em profundidade, as vivências pós-queimadura. As publicaçoes revelam um percurso de sofrimento com impactos na imagem corporal e nos aspectos emocionais. Ressaltam-se também as recomendaçoes direcionadas à necessidade de maior empatia por parte dos profissionais para auxiliar nas práticas de cuidado.

Pelo impacto físico, psíquico e social advindos da queimadura, bem como pelo alto custo dos serviços de saúde para a atençao a essa populaçao, evidencia-se a necessidade de políticas públicas direcionadas a prevençao de queimaduras, bem como a relevância de açoes específicas para as mulheres, após a alta, visando o cuidado com as lesoes ou até mesmo sequelas presentes após o tratamento.


PRINCIPAIS CONTRIBUIÇOES

A maioria dos estudos visou descrever o perfil epidemiológico de mulheres com queimaduras, revelando as condiçoes socioeconômicas, perfil ocupacional e contextos de vida.

As causas acidentais de queimaduras estao relacionadas a um contexto de baixo nível econômico e educacional e pela facilidade na aquisiçao de produtos de alto poder de combustao.

Os estudos desvendam a violência doméstica presente nos contextos de vida das mulheres. Isto contribui para o aumento do número de queimaduras e reforçam a necessidade dos governos locais e nacionais em manter os investimentos nas políticas de proteçao à mulher.

As campanhas educativas possuem essencial papel na conscientizaçao sobre os riscos advindos da queimadura a fim de alcançar a adoçao de comportamentos saudáveis.

Há necessidade de investimentos em pesquisas que procurem compreender as relaçoes entre queimaduras e as tentativas de suicídio, desvendando fatores, contextos e possibilidade de açoes políticas.

As divulgaçoes das possibilidades de tratamento auxiliam na escolha profissional de suas condutas baseadas em evidências científicas.


AGRADECIMENTO


A Maria José Gugelmin e Rosibeth Palm pelas contribuiçoes para melhoria deste artigo


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Recebido em 17 de Fevereiro de 2017.
Aceito em 3 de Abril de 2017.

Local de realização do trabalho: Universidade Federal do Paraná, Departamento de Terapia Ocupacional, Curitiba, PR, Brasil.

Conflito de interesses: Os autores declaram não haver.


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