1415
Visualizações
Acesso aberto Revisado por pares
Relato de Caso

Úlcera de Marjolin: Revisão de literatura e relato de caso

Marjolin’s Ulcer: Literature review and Report of a Case

Richard Raphael Borges Tavares Vieira1; André Luis Esteves Batista1; Ana Beatriz Esteves Batista1; José Victor de Souza Rosa1; Ana Clara de Oliveira Diniz1; Gerson França Leite2; Joaquim Ferreira de-Paula2; Carlos Augusto Marques Batista2

RESUMO

OBJETIVO: Revisao narrativa de literatura e descriçao de um caso de úlcera de Marjolin conduzido nas dependências do Hospital Escola Luiz Gioseffi Jannuzzi, enfatizando a conduta e evoluçao a partir da literatura e a adotada no caso abordado.
RELATO DE CASO: Homem de 52 anos, com história de queimadura térmica em membro inferior direito há cerca de 25 anos, que evoluiu tardiamente com o aparecimento de lesao eritematosa, puntiforme e pruriginosa, tornando-se ulcerada e, posteriormente, úlcero-vegetante, com aumento progressivo e sem cicatrizaçao, associada a dor e episódios de sangramento por traumas. Realizada biópsia incisional, o histopatológico confirmou tratar-se de carcinoma epidermoide bem diferenciado, desenvolvido em tecido cicatricial antigo. Foi realizada ressecçao ampla da lesao, com enxertia local, sendo ainda necessária a realizaçao de desbridamento no pós-operatório devido à necrose da enxertia.
CONCLUSOES: As lesoes cicatriciais ou ulceradas crônicas que sofrem modificaçoes no seu aspecto clínico evolutivo devem ser avaliadas como potencialmente carcinomatosas e as ulceraçoes com tendência à cronificaçao devem ser prontamente tratadas, com o emprego de enxerto, retalho ou até mesmo amputaçao se necessário. As áreas cicatriciais precisam sempre ser protegidas e deve-se sempre considerar o risco potencial de malignidade associada com úlceras venosas crônicas nos membros inferiores, realizando biópsias repetidas para descartar a possibilidade de transformaçao maligna. O paciente em questao necessitou de ressecçao ampla da lesao, com enxertia local, a qual evoluiu com necrose no pós-operatório, sendo realizado desbridamento e curativos diários até que apresentasse recuperaçao e, posteriormente, cicatrizaçao por segunda intençao.

Palavras-chave: Úlcera da Perna. Cicatrização. Carcinoma de Células Escamosas. Queimaduras.

ABSTRACT

OBJECTIVE: A literature narrative review and description of a Marjolin ulcer case conducted at the Luiz Gioseffi Jannuzzi School Hospital, emphasizing the conduct and evolution from the literature and adopted in the case discussed.
CASE REPORT: 52 year old male, with a history of thermal burn in the lower right limb for about 25 years, who developed late with the onset of an erythematous, punctiform and pruritic lesion, becoming ulcerated and subsequently ulcer-creasing, progressive increase without healing, associated with pain and bleeding episodes due to trauma. An incisional biopsy was performed; the histopathological examination confirmed that it was a well differentiated squamous cell carcinoma, developed in old scar tissue. A wide resection of the lesion with local graft was performed, and postoperative debridement was still necessary due to the infectious complication.
CONCLUSIONS: Scarring injuries or ulcerated chronic suffering changes in its evolving clinical aspect should be evaluated as potentially carcinomatous and ulcerations with a tendency to chronicity should be promptly treated with the use of graft, flap or even amputation if required. Scarring areas should be protected and should always consider the potential risk of malignancy associated with chronic venous ulcers of the lower limbs, and repeated biopsies should be performed to rule out the possibility of malignant transformation. The patient in question required extensive resection of the lesion with local graft, which evolved with postoperative necrosis, and debridement and daily dressings were performed until recovery and later, it heals by second intention.

Keywords: Leg Ulcer. Wound Healing. Carcinoma, Squamous Cell. Burns.

INTRODUÇAO

Ulcera de Marjolin é uma degeneraçao maligna, especialmente do tipo carcinoma de células escamosas, que ocorre em feridas crônicas nao cicatrizadas ou cicatrizadas por segunda intençao. A maioria das descriçoes reflete a transformaçao neoplásica a partir de uma cicatriz de queimadura, mas podem surgir em diversos tipos de lesoes crônicas, como úlceras de pressoes, úlceras venosas, úlceras diabéticas, tecidos irradiados, fístulas, osteomielite, e outras menos comuns, como hidradenite, cistos pilonidais, perifoliculites, fístulas urinárias, lesoes por leishmaniose, lesoes lúpicas, lesoes por congelamento, cromomicose, blastomicose, psoríase, cicatrizes vacinais, cicatrizes de herpes zoster, cicatrizes de enxerto, cicatrizes de mordeduras, síndrome de Fournier, trombose de veia femoral e outras1-18.

A primeira descriçao sobre esta entidade é atribuída a Celsius, no século I, porém, a clássica descriçao feita pelo cirurgiao francês Jean Nicholas Marjolin, em 1828, o qual relacionava o surgimento de carcinoma em cicatrizes de queimaduras, foi que consagrou o epônimo1-4. Vários relatos surgiram no decorrer dos anos, entretanto, ela nao é comum e diferenças regionais em sua epidemiologia sao conhecidas, sendo imprescindível a biópsia em todo caso de ulceraçao que se torna vegetante e/ou verrucosa2-4,6,9-12.

O tratamento definitivo é a exérese, mas outras abordagens também podem oferecer benefícios2,4-6,10. A importância do diagnóstico precoce se deve à agressividade do tumor, que em um tratamento tardio pode acarretar grandes mutilaçoes, inclusive levando a óbito e, quando a metástase se desenvolve após a ressecçao do tumor primário, tende a apresentar crescimento mais agressivo1-4,6.

A agressividade, raridade, alta taxa de metastatizaçao e de recidivas sao aspectos das úlceras de Marjolin que tornam de extrema importância as descriçoes específicas de como estes casos sao conduzidos em contraposiçao com a literatura, proporcionando maior conhecimento e divulgaçao dos aspectos da doença1-12. Este trabalho tem como objetivo relatar as principais características da úlcera de Marjolin, enfatizando a conduta e evoluçao a partir da literatura e a adotada no caso abordado.

Para isto, inicialmente foi realizado levantamento bibliográfico com busca de artigos nas bases de dados PubMed, LILACS e Scielo, resultando em diversos relatos e revisoes, dentre as quais foram selecionados preferencialmente artigos publicados nos últimos 5 anos e utilizados para elaboraçao de revisao narrativa de literatura com descriçao de um caso.

Para isto, foram seguidos todos os procedimentos éticos necessários, sendo o trabalho previamente submetido para apreciaçao ao Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Valença, em Valença, RJ, e aprovado com número de parecer 1.523.045. Após isso, os dados pesquisados na literatura foram confrontados com os achados do quadro clínico do paciente e apresentados na discussao, demonstrando os aspectos fisiopatológicos da lesao, a conduta utilizada e o resultado pós-operatório.


RELATO DE CASO

Paciente do sexo masculino, 52 anos, pardo, casado, lavrador, natural e residente na área rural de Rio Preto, MG, foi encaminhado ao Ambulatório de Cirurgia Geral para a realizaçao de biópsia incisional de uma ferida úlcero-vegetante em perna direita (Figura 1), que segundo o paciente nao cicatrizava.


Figura 1 - Lesao úlcero-vegetante em panturrilha direita.



Relatou que a mesma havia surgido há aproximadamente dois anos, sendo, inicialmente, uma lesao eritematosa, puntiforme e pruriginosa, tornando-se ulcerada e, posteriormente, úlcero-vegetante, com aumento progressivo e sem cicatrizaçao ao longo deste período, localizada em tecido cicatricial de panturrilha direita por queimadura.

Associava-se ao quadro dor local ao toque e episódios de sangramento aos traumas. Negava fatores agravantes e atenuantes, odor fétido, prurido, ou outros sintomas associados. Referia ainda o surgimento de diversas outras lesoes, que ulceravam, porém com remissao espontânea, nos últimos quatro anos. Neste período procurou auxílio médico, fazendo uso de diversas pomadas, medicamentos e curativos diários, sem melhora da lesao.

Hipertenso, história familiar de diabetes e ex-tabagista, possuía de mais relevante em sua história patológica pregressa um episódio de queimadura térmica, acidental, predominantemente de 1º e 2º graus, e algumas áreas de 3º grau, em membros inferiores, com aproximadamente 18% de superfície corporal queimada, ocorrido durante manipulaçao de óleo diesel e fogo há 25 anos.

Ficou hospitalizado por 109 dias, sendo tratado com curativos diários, nitrofurazona tópico e suporte clínico. Manteve curativo e cuidados diários, domiciliares e, após três meses, fez enxertia de uma área localizada no terço distal de perna direita.

Realizada a biópsia incisional da lesao em questao, obteve-se o diagnóstico de carcinoma epidermoide bem diferenciado, sendo, entao, encaminhado ao serviço de Cirurgia Plástica para ressecçao ampla da lesao com enxertia local (Figura 2), nao havendo neste caso necessidade de utilizaçao de órtese ou prótese.


Figura 2 - Aspecto cirúrgico, com a ressecçao da lesao (A), realizaçao de enxerto (B) e retirada de fragmento para biópsia (C).



No transoperatório nao foi evidenciada invasao de fáscia, músculos gastrocnêmios e tríceps sural. A anatomia patológica da lesao mostrou carcinoma epidermoide bem diferenciado, ulcerado, com limites cirúrgicos livres. O paciente evoluiu com necrose do enxerto no pós-operatório (Figura 3), realizando-se desbridamento e curativos diários até que apresentasse recuperaçao e cicatrizaçao por segunda intençao do local. Após isso, nao retornou novamente a este serviço.


Figura 3 - Complicaçao pós-operatória com áreas de necrose.



DISCUSSAO

As neoplasias de pele sao as doenças malignas mais comuns em todo o mundo, com aproximadamente 2 a 3 milhoes de casos de câncer de pele queratinocíticos e 132.000 casos de melanoma por ano. Os tipos mais frequentes sao o carcinoma basocelular (~70%), seguido de carcinoma de células escamosas (~15%) e melanomas cutâneos (~10%).

Os carcinomas de células escamosas, também designado como carcinoma epidermoide ou espinocelular, sao os mais comuns e tipicamente encontrados em cicatrizes ulceradas crônicas de queimaduras, correspondendo à descriçao clássica das úlceras de Marjolin19; termo o qual atualmente tem sido empregado de forma mais abrangente para designar, além da transformaçao maligna inicialmente descrita em cicatrizes por queimaduras, também as neoplasias malignas que se desenvolvem em úlceras crônicas e cicatrizes antigas de qualquer natureza1,5,6.

O mecanismo de transformaçao maligna ainda nao é bem compreendido, mas sabe-se que possui implicaçao de diversos fatores como úlceras crônicas que nao cicatrizam e reparo tecidual inadequado, exposiçao contínua a toxinas locais pró-mitóticas e de dano tecidual e a cocarcinógenos após a lesao, distúrbios imunológicos, microtraumas teciduais repetitivos e irritaçao crônica, induzindo proliferaçao celular, baixa resistência cicatricial a traumas futuros, fraca vascularizaçao, deficiência do sistema linfático, hipóxia tecidual, carcinogênese epitelial, mutaçoes de DNA e envelhecimento1,6,7,9,19.

A exposiçao à radiaçao ultravioleta do sol é a causa ambiental mais importante de câncer de pele em geral, todavia, em grupos étnicos de nao brancos, nos quais exposiçao à radiaçao ultravioleta desempenha um papel menor, o tecido cicatricial exibe maior influência na carcinogênese da pele19. Os fatores de risco primários para a transformaçao maligna incluem a idade do doente e a duraçao da úlcera20.

Acredita-se que a queimadura torna a área acometida um sítio imunologicamente privilegiado devido à pobre vascularizaçao e drenagem linfática prejudicada, levando a uma falha do reconhecimento desta lesao pelo sistema imunológico e impossibilitando a defesa contra células mutantes, que proliferam desordenadamente e progridem em forma neoplásica por mutaçao espontânea ou influência de agentes carcinógenos12,16.

Sao descritas mutaçoes no gene p53 e no gene Fas em grande parte dos casos e as recentes investigaçoes a nível molecular indicam que estas mutaçoes e o envolvimento do antígeno leucocitário humano DR4 podem estar relacionadas com o desenvolvimento da úlcera de Marjolin após queimaduras1,3,12. Além disso, a proliferaçao anormal de queratinócitos cronicamente ativados é apontada como o principal fator de risco para a progressao carcinomatosa4,5.

A revisao sistemática com meta-análise mais recente sobre os fatores de risco e associaçoes com recorrência, metástase nodal e morte causada por carcinoma de células escamosas foi realizada por Thompson et al.21 e inclui 36 estudos com descriçoes de 23.421 casos em 17 248 pacientes. Segundo estes autores, os fatores de risco associados com aumento estatisticamente significativo do risco de recidiva sao espessura de Breslow superior a 2 mm, invasao além da gordura subcutânea, diâmetro superior a 20 mm, localizaçao em regiao temporal e fraca diferenciaçao.

Os fatores de risco estatisticamente significativos para metástase e que mostram associaçao com morte por carcinoma de células escamosas incluem invasao além da gordura subcutânea e perineural, diâmetro superior a 20 mm, fraca diferenciaçao, imunossupressao e localizaçao em regiao temporal, orelha ou lábio.

Espessuras de Breslow superiores a 2 mm apresentaram maior risco relativo para metástase do que espessuras superiores a 6 mm, achado este que pode ser justificado pelo maior número total de pacientes com metástases nodais primárias de profundidades tumorais entre 2 a 6 mm frente uma menor populaçao de pacientes com o mesmo desfecho e profundidade tumoral superior a 6 mm21.

As lesoes apresentam morfologia ulcerativa, infiltrativa, com bordas elevadas e endurecidas; mas podem ainda apresentar-se exofíticas ou com tecido de granulaçao exuberante e a malignizaçao da cicatriz pode se apresentar de forma aguda ou crônica, caso ocorra até ou após um ano do trauma inicial, respectivamente1,5,7,8.

O carcinoma de células escamosas corresponde a 75-90% dos casos de úlcera de Marjolin, e os restantes sao compostos basicamente por carcinoma basocelular, melanoma, sarcoma, adenocarcinoma e outros menos comuns1,4,5,9,17. A hiperplasia pseudoepiteliomatosa é uma lesao benigna com possibilidade de regressao espontânea que pode ser de difícil distinçao em relaçao ao carcinoma epidermoide, sendo necessárias, muitas vezes, múltiplas biópsias de diferentes locais para o diagnóstico definitivo1,2,7.

Entre 1923 e 2004 foram descritos em relatos de casos mais de mil casos de câncer de pele ocorridos em tecido cicatricial, dentre os quais 412 foram capturados em uma grande revisao realizada por Kowal-Vern & Criswell17, em 2005, que observaram 71% dos casos relatados de carcinomas de células escamosas, 12% de carcinomas basocelulares e 6% de melanoma cutâneo.

A incidência de carcinoma de células escamosas foi relatada igualmente em homens e mulheres, enquanto carcinoma basocelular era mais comum em homens e melanoma em mulheres. A maioria dos relatos de casos referia-se ao câncer de pele decorrente de queimaduras sustentadas durante a infância, com carcinoma basocelular, tendo o período de latência mais curto para malignidade em pacientes que eram significativamente mais velhos quando queimados do que pacientes com outros cânceres de pele17.

Observa-se ainda um paradoxo na literatura, com um grande volume de relatos de casos de úlceras de Marjolin em contraste com aparente escassez de evidências epidemiológicas associando câncer de pele com cicatrizes, fato pelo qual Wallingford et al.19 revisaram de forma sistemática 457 casos da literatura, a fim de quantificar o risco dos principais tipos de cânceres de pele que surgem no tecido cicatricial de qualquer etiologia, apresentando resultados que sugerem nao haver maior risco de câncer de pele em pacientes queimados no geral, embora um pequeno excesso de carcinomas de células escamosas em cicatrizes de queimadura seja evidente.

De modo geral, pode-se dizer que estas neoplasias acometem principalmente adultos com idade média em torno dos 40-50 anos, havendo predomínio no sexo masculino, que pode variar de 2:1 até de 9:1. As extremidades sao as áreas mais frequentemente acometidas, principalmente membros inferiores1,3-10, e ocorrem menos frequentemente em membros superiores, regioes da cabeça e face, tronco e pênis, nessa ordem, podendo muitas vezes surgir em torno da área de tensao máxima que sofre desagregaçao repetida após queimadura, como fossa poplítea e fossa cubital11,12,15.

Um período preciso de latência entre o surgimento da lesao e a degeneraçao maligna nao é bem estabelecido e pode variar de 10 a mais de 70 anos de idade1,4-6,12. Uma análise recente de 25 trabalhos apontou para um período de latência de 6 a 42 anos, com média de 28,7 anos até o diagnóstico18. Já foi proposto que a idade do paciente no momento da lesao influencia o tempo de latência, sendo este inversamente proporcional à idade do paciente na época da injúria13, embora haja raros relatos de casos precoces nos quais os períodos de latência compreenderam poucos meses de duraçao14,15.

Os aspectos clínicos sugestivos de transformaçao maligna compreendem úlceras que nao cicatrizam, fundo granuloso, bordos espessados e base endurada, aumento da consistência da lesao, vegetaçao, odor desagradável, bordas elevadas e formaçao de nódulos sobre a cicatriz2-4,8, além de outros fatores como traumatismo e irritaçao constante, imunodeficiência, fatores de crescimento presentes no exsudado, alteraçoes na vascularizaçao tecidual, infecçao crônica com ou sem osteomielite, higiene inadequada, fatores ambientais e predisposiçao genética2-5,10.

O surgimento e/ou intensificaçao da dor, supuraçao fétida e de volume anormal, áreas exofíticas e friáveis, alargamento e endurecimento da lesao, tendência à hemorragia, ferida nodular e hipergranulaçao sao sinais fortemente relacionados à malignizaçao10,20. A morfologia atípica ou alteraçoes na aparência, bem como a resistência terapêutica, apesar de cuidados ótimos realizados em 6-12 semanas, devem levar os médicos a considerarem biópsias múltiplas e em série20.

Estes tumores possuem maior tendência para a recorrência local e a disseminaçao das lesoes tumorais por metástases à distância através do sistema linfático6, podendo ocorrer também por contiguidade e por via hematogênica. A frequente ocorrência de infecçao secundária pode dificultar a correta avaliaçao de linfonodomegalia satélite1,3.

A incidência de metástases para linfonodos varia de 15 a 49% dos casos, a qual se considera ser um evento tardio, possivelmente dificultado pelo tecido cicatricial que isolam o tumor, e é influenciada pelo tempo do complexo úlcera/cicatriz e pelo grau de diferenciaçao do carcinoma associado, sendo este maior nas menos diferenciadas1,4,17.

Recentemente, o grupo denominado Wound Healing, da Sociedade de Dermatologia Alema, iniciou registro dos carcinomas de células escamosas decorrentes de úlceras venosas para avaliar suas características diagnósticas. De 2010 a 2013, o grupo registrou 30 pacientes, principalmente mulheres, com média de idade de 76 anos e que apresentaram duraçao média de 15 anos das úlceras venosas na perna antes do diagnóstico. As características de feridas suspeitas incluíram, em ordem decrescente de importância, resistência à terapia, odor, aparência clínica e dor20.

O diagnóstico definitivo é confirmado a partir do histopatológico de biópsias incisionais4,7 e o tratamento é cirúrgico, quando possível1,3,5,6. Alguns fatores sao definidores da conduta terapêutica, como localizaçao primária, extensao da lesao, idade do paciente e presença ou nao de metástase2, variando entre excisao da lesao, excisao e enxerto, amputaçao e radioterapia2,5.

A lesao deve ser tratada com excisao ampla, preferencialmente de toda a cicatriz, com margem cirúrgica de pelo menos 2 cm e enxertia1,4,5, podendo-se ainda proceder o esvaziamento ganglionar regional por meio de linfadenectomia em casos específicos nos quais haja linfadenopatia regional palpável, tumores grandes e pouco diferenciados. Indica-se a amputaçao em casos extremos, principalmente quando a neoplasia se estende à cavidade articular ou ao tecido ósseo1,3,5.

A radioterapia é indicada nos casos em que nao há possibilidade de cirurgias, como metástases linfonodais inoperáveis, tumores grau 3 ou maiores que 10 cm com linfadenopatia, tumores grau 3 e maiores que 10 cm sem linfadenopatia e lesoes de cabeça e pescoço com linfadenopatia, mas nao é recomendado para o tratamento do sítio primário em virtude das alteraçoes tróficas e da dificuldade de regeneraçao do tecido remanescente.

A quimioterapia, intralesional ou sistêmica, pode ser empregada de forma adjuvante nos pacientes com metástases e as drogas mais utilizadas sao 5-flouracil, cisplatina e metrotrexate. Foram ainda reportados alguns casos individuais que responderam positivamente à aplicaçao tópica de cetuximab e miltefosina1,5,6.

Outras opçoes terapêuticas incluem a matriz dérmica acelular, a qual demonstrou recentemente melhor resultado estético, menor contraçao de enxertos e menor morbidade às áreas doadoras; e a perfusao hipertérmica isolada do membro, um método promissor de terapia regional que pode controlar a doença local ou em trânsito avançado irressecável, evitando assim a amputaçao do membro e preservando sua funcionalidade1,2,5,6.

Batista et al.22 descrevem em seu trabalho a reconstruçao de membros inferiores após excisao de úlcera de Marjolin em uma série de quatro casos e enfatizam a importância do estudo de congelaçao transoperatório para obtençao de margens cirúrgicas livres e avaliaçao do grau de diferenciaçao para definiçao do acompanhamento oncológico.

Os mesmos autores alertam ainda para as adaptaçoes funcionais nos pacientes operados, devendo ser ofertado programa de reabilitaçao precoce que enfoque o posicionamento, os curativos compressivos, o controle do edema e o fortalecimento muscular com o objetivo de prepará-los para o encaixe de órteses ou próteses22.

Para confecçao e seleçao dos materiais protéticos, devem-se considerar ainda necessidades individuais, dependendo do nível ou do tipo de perda do membro. É importante, desde o início, o ajuste do coto e dos anexos protéticos por meio do alinhamento biomecânico e estático das próteses e da avaliaçao dinâmica, verificando se há irritaçao na pele ou dificuldades durante o uso das próteses e realinhando quando necessário.

Os pacientes devem receber treinamento protético, visando reestabelecer o equilíbrio e atividades de deambulaçao. Os ajustes e revisoes regulares sao fundamentais na prevençao de úlceras nos cotos amputados, as quais, quando ocorrem, cicatrizam, em média, seis semanas após a suspensao do uso da prótese. Há ainda outros problemas relacionados aos cotos de amputaçao, tais como a cicatrizaçao, a dor neuropática do membro fantasma, as desordens cutâneas e aquelas relacionadas à imagem corporal, tornando evidente a necessidade de uma abordagem multiprofissional destes pacientes22.

Quanto ao prognóstico, apesar de muito reservado, é pior nas neoplasias menos diferenciadas, nos casos com metástases à distância e quando nao é possível a cirurgia radical. Pode haver tumor residual após a cirurgia em até 58% dos casos e cerca de 30% recidivam1,5,17. Em uma análise na qual foram avaliados 31 casos de úlceras de Marjolin, a sobrevida em três anos foi de 94% para tumores bem diferenciados e de 38% para os pouco diferenciados, em que pacientes com metástases à distância nao sobreviveram três anos4.

Sabendo que o envolvimento histopatológico dos linfonodos regionais é um dos mais importantes fatores prognósticos no manejo das úlceras de Marjolin, Motamedolshariati et al.23 investigaram a viabilidade da biópsia de nódulo sentinela e mapeamento linfático com injeçao peritumoral subcutânea de radiotraçador em 10 pacientes e concluíram que este procedimento nao demonstrou viabilidade na avaliaçao das úlceras de Marjolin em áreas de extensas cicatrizes, apresentando uma taxa de detecçao de apenas 20%, embora maiores estudos sejam necessários para sustentar a afirmaçao.


CONSIDERAÇOES FINAIS

As úlceras de Marjolin apresentam-se como neoplasias malignas da pele que surgem preferencialmente após queimaduras térmicas e requerem abordagem cirúrgica precoce devido a sua alta agressividade, potencial metastatizante e alto índice de recidivas, sendo o subtipo histológico de carcinoma de células escamosas o mais comum1,4-7,11,18. Estes tumores possuem sua verdadeira prevalência ainda incerta e um esforço unificado seria necessário para melhor compreensao da incidência crescente dos carcinomas de células escamosas, podendo partir da recolha de dados e comunicaçao de fatores de risco de maneira prospectiva e multicêntrica19,21.

Neste trabalho, apresentamos uma revisao narrativa de literatura e o relato do caso de um homem de 52 anos de idade, com história de queimadura térmica em membro inferior direito há 25 anos, que evoluiu tardiamente com o desenvolvimento de carcinoma de células escamosas em tecido cicatricial antigo, em concordância com a literatura consultada. Foi submetido à cirurgia e evoluiu com complicaçao infecciosa pós-operatória, que regrediu após tratamento específico. Sendo morador de outro município, o paciente nao procurou novamente este serviço após resoluçao da infecçao. Visto o que foi discutido, é importante salientar:

• Quando uma lesao cicatricial ou ulcerada crônica sofre modificaçao no seu aspecto clínico evolutivo, apresentando morfologia atípica ou se tornando dolorosa, infiltrada, endurecida, vegetante ou secretante, deve ser avaliada como um carcinoma em potencial1,20;

• Deve-se sempre considerar o risco potencial de malignidade associada com úlceras crônicas nos membros inferiores, e biópsias repetidas devem ser realizadas para descartar a possibilidade de transformaçao maligna, além de exame cuidadoso das cadeias linfonodais5-7,20;

• A melhor forma de prevençao é o tratamento adequado das cicatrizes e das ulceraçoes com tendência à cronificaçao já na primeira abordagem, com excisao e enxerto cutâneo, retalho ou até mesmo amputaçao, se necessário1,17;

• É fundamental o monitoramento dos pacientes queimados com consultas periódicas e avaliaçao de qualquer alteraçao cicatricial1;

• Areas cicatriciais devem ser devidamente protegidas do trauma repetido e da radiaçao ultravioleta1,7;

• A cirurgia com ampliaçao de margem permanece como tratamento de eleiçao para as úlceras de Marjolin, sendo a melhor modalidade terapêutica no que diz respeito à taxa de cura e à sobrevida10;

• A profundidade tumoral está associada ao risco relativo mais elevado de recidiva local e metástase de carcinoma de células escamosas, e o diâmetro do tumor superior a 20 mm está associado ao risco relativo mais elevado de morte causada pela doença21;

• Para melhor entendimento da incidência crescente de carcinoma de células escamosas, é necessária uma recolha unificada e consistente dos dados epidemiológicos e a comunicaçao de fatores de risco, em um esforço prospectivo e multicêntrico21;

• Pacientes que passaram por intervençoes mais agressivas em membros inferiores devem ser prontamente reabilitados e avaliados com atençao quanto ao uso de órteses e próteses, as quais podem proporcionar uma adequada deambulaçao e conferir conforto neuropsicológico22.


REFERENCIAS

1. Leonardi DF, Oliveira DS, Franzoi MA. Ulcera de Marjolin em cicatriz de queimadura: revisao de literatura. Rev Bras Queimaduras. 2013;12(1):49-52.

2. Bauk VOZ, Assunçao AM, Domingues RF, Fernandes NC, Maya TC, Maceira JP. Ulcera de Marjolin: relato de 12 casos. An Bras Dermatol. 2006;81(4):355-8.

3. Lee SH, Shin MS, Kim HS, Park WS, Kim SY, Jang JJ, et al. Somatic mutations of Fas (Apo-1/CD95) gene in cutaneous squamous cell carcinoma arising from a burn scar. J Invest Dermatol. 2000;114(1):122-6.

4. Copcu E, Aktas A, Sişman N, Oztan Y. Thirty-one cases of Marjolin's ulcer. Clin Exp Dermatol. 2003;28(2):138-41.

5. Simao TS, Almeida PCC, Faiwichow L. Ulcera de Marjolin: Visao atualizada. Rev Bras Queimaduras. 2012;11(4):251-3.

6. Altunay I, Çerman AA, Sakiz D, Ates B. Marjolin's Ulcer Presenting with In-Transit Metastases: A Case Report and Literature Review. Ann Dermatol. 2015;27(4):442-5.

7. dos Santos VM. Letter to the Editor: Concerns about Marjolin's ulcer. Rom J Morphol Embryol. 2015;56(4):1555.

8. Pérez LC, Elgueta-Noy A. Ulcera de Marjolin. Rev Chil Dermatol. 2007;23(1):66.

9. Ortiz BDM, Riveros R, Gabriela MB, Sosa RM, Masi MR, Knopfelmacher O, et al. Marjolin Ulcer: A Case Report. Our Dermatol Online. 2014;5(1):51-3.

10. Tavares E, Dores JA, Ferreira L, Martinho G, Vera-Cruz F. Ulcera de Marjolin associada a ulceraçao e osteomielite crônicas. An Bras Dermatol. 2011;86(2):366-9.

11. Surase S, Deshpande K, Bijwe S, Vadnere M. Marjolins Ulcer. Bombay Hosp J. 2015;57(2):227-31.

12. Chalya HL, Mabula JB, Gilyoma JM, Rambau P, Masalu N, Simbila S. Early Marjolin's ulcer developing in a penile human bite scar of an adult patient presenting at Bugando Medical Centre, Tanzania: A case report. Tanzan J Health Res. 2012;14(4):288-92.

13. Lawrence EA. Carcinoma arising in the scars of thermal burns, with special reference to the influence of the age at burn on the length of the induction period. Surg Gynecol Obstet. 1952;95(5):579-88.

14. Thio D, Clarkson JH, Misra A, Srivastava S. Malignant change after 18 months in a lower limb ulcer: acute Marjolin's revisited. Br J Plast Surg. 2003;56(8):825-8.

15. Soto-Dávalos BA, Cortés-Flores AO, Bandera-Delgado A, Luna-Ortiz K, Padilla-Rosciano AE. Malignant neoplasm in burn scar: Marjolin's ulcer. Report of two cases and review of the literature. Cir Cir. 2008;76(4):329-31.

16. Bostwick J 3rd, Pendergrast WJ Jr, Vasconez LO. Marjolin's ulcer: an immunologically privileged tumor? Plast Reconstr Surg. 1976;57(1):66-9.

17. Kowal-Vern A, Criswell BK. Burn scar neoplasms: a literature review and statistical analysis. Burns. 2005;31(4):403-13.

18. Kerr-Valentic MA, Samimi K, Rohlen BH, Agarwal JP, Rockwell WB. Marjolin's ulcer: modern analysis of an ancient problem. Plast Reconstr Surg. 2009;123(1):184-91.

19. Wallingford SC, Olsen CM, Plasmeijer E, Green AC. Skin cancer arising in scars: a systematic review. Dermatol Surg. 2011;37(9):1239-44.

20. Reich-Schupke S, Doerler M1, Wollina U, Dissemond J, Horn T, Strölin A, et al. Squamous cell carcinomas in chronic venous leg ulcers. Data of the German Marjolin Registry and review. J Dtsch Dermatol Ges. 2015;13(10):1006-13.

21. Thompson AK, Kelley BF, Prokop LJ, Murad MH, Baum CL. Risk Factors for Cutaneous Squamous Cell Carcinoma Recurrence, Metastasis, and Disease-Specific Death: A Systematic Review and Meta-analysis. JAMA Dermatol. 2016;152(4):419-28.

22. Batista KT, Araújo HJ, Paz Junior AC. Reconstruçao de membros inferiores após excisao de úlcera de Marjolin: relato de casos. Rev Bras Cir Plást. 2010;25(3):562-5.

23. Motamedolshariati M, Rezaei E, Beiraghi-Toosi A, Jahani A, Tayyebi Meibodi N, Fattahi A, et al. Sentinel node mapping in Marjolin's ulcers: is it feasible? Wounds. 2015;27(3):54-62.









Recebido em 7 de Novembro de 2016.
Aceito em 18 de Janeiro de 2017.

Local de realização do trabalho: Centro de Ensino Superior de Valença, Fundação Dom André Arcoverde, Faculdade de Medicina de Valença, Valença, RJ, Brasil.

Conflito de interesses: Os autores declaram não haver


© 2024 Todos os Direitos Reservados