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Acesso aberto Revisado por pares
Editorial

Em busca de excelência em pesquisa

In search of excellence in research

Marcia Aparecida Ciol

Nos últimos anos, tem havido um amadurecimento da pesquisa em áreas de saúde no Brasil, o qual se reflete nas publicaçoes em vários periódicos, incluindo a Revista Brasileira de Queimaduras. Com esse amadurecimento, vem a responsabilidade de se aumentar a análise crítica da qualidade das publicaçoes que sao submetidas para avaliaçao, e autores e avaliadores sao chamados a contribuir na busca de excelência em pesquisa.

Publicaçoes de boa qualidade sao oriundas de pesquisas de boa qualidade, que, por sua vez, decorrem de um bom planejamento inicial. Estudos mal planejados, malconduzidos ou mal escritos acabam nao sendo publicados, causando prejuízo tanto para o pesquisador como para a instituiçao onde a pesquisa foi feita. Ademais, se houve envolvimento de seres humanos (como pacientes, por exemplo), um estudo mal desenvolvido pode gerar sobrecarga desnecessária aos participantes, além de se perder uma oportunidade preciosa para a obtençao de dados que possam responder à alguma pergunta importante. Portanto, é natural que pesquisadores, principalmente os que estao iniciando na carreira, sintam-se por vezes frustrados ou até mesmo confusos com a falta de diretrizes que possam ajudar na escolha de um tema de pesquisa e no desenvolvimento de um bom plano de trabalho.

Como profissional de bioestatística, tenho colaborado com vários profissionais de Medicina e Enfermagem, tanto com pesquisadores estabelecidos como com alunos de pós-graduaçao. Os pontos apresentados neste editorial foram gerados dessa experiência.

Quando abordada por um pesquisador para discutir algum trabalho, tenho duas perguntas essenciais: qual é a pergunta da pesquisa e por que ela deve ser respondida. Estas duas perguntas devem nortear o trabalho e é a partir delas que idealizamos o estudo.

A pergunta da pesquisa talvez seja uma das partes mais difíceis no desenvolvimento do estudo. A pergunta deve ser clara e concisa, e a resposta a essa pergunta deve resolver um problema de interesse e agregar algum valor ao conhecimento na área de estudo.

Para definir a pergunta da pesquisa, é comum que o pesquisador comece a partir de um problema mais geral e, de acordo com sua especialidade e área de interesse, foca a pergunta de forma a poder respondê-la de forma científica. Para um exemplo mais concreto, vamos imaginar dois pesquisadores da área de enfermagem: um na área de cardiologia e um na área de queimados. Suponha que os dois pesquisadores tenham interesse em melhorar a adesao ao tratamento prescrito (o problema de modo geral). Ao pensar na sua área específica, cada pesquisador começa a definir a populaçao de interesse de modo mais restrito. Por exemplo, o enfermeiro da cardiologia pode estar interessado em melhorar a adesao ao anticoagulante oral em pacientes com doença coronária, pois sabe que muitos pacientes nao aderem ao tratamento de modo apropriado. Já o enfermeiro da área de queimados pode estar interessado em conhecer mais sobre a adesao ao autocuidado relacionado às queimaduras após a alta da hospitalizaçao, pois pouco é sabido sobre como esses pacientes desempenham o autocuidado ao retornarem para casa.

Uma vez definida a pergunta da pesquisa, o pesquisador deve avaliar a importância dessa pergunta e justificar a necessidade do estudo. Voltando aos exemplos anteriores, por que é importante estudar adesao ao tratamento ou ao autocuidado? O pesquisador nao deve assumir que o motivo é autoevidente. A justificativa deve ser colocada de forma objetiva e clara, para ser entendida pelos pesquisadores na área de interesse, pelos financiadores do estudo (os quais podem nao estar completamente familiarizados com a área de interesse), e mesmo pelos administradores de instituiçoes onde os resultados poderao ser aplicados no futuro.

Essas justificativas sao muito importantes, especialmente em situaçoes nas quais o pesquisador depende de outros profissionais para a coleta de dados. Por exemplo, se o estudo precisa ser feito dentro de uma clínica especializada, é natural que os profissionais que nela trabalhem sintam-se pressionados a fazer uma atividade (coleta de dados) que nao corresponde à descriçao de seu trabalho. Uma boa justificativa do estudo, mostrando o seu benefício para os profissionais da clínica (por exemplo, casos menos graves, melhor entendimento da doença, menos visitas a departamentos de emergência, etc.) pode facilitar a comunicaçao e possibilitar a conduçao do estudo.

Nos nossos exemplos, as perguntas da pesquisa e correspondente importância poderiam ser formuladas como:

1) Pessoas com doenças coronárias que necessitam fazer o uso de anticoagulante oral têm uma tendência a nao aderir ao tratamento de forma adequada. Consequentemente, essas pessoas sao internadas por descompensaçao com maior frequência do que aquelas que aderem ao tratamento, causando prejuízo para a pessoa (perda de dias de trabalho, rompimento da rotina familiar, custos hospitalares), para a clínica (maior número de leitos necessários, maior carga de trabalho para os enfermeiros da unidade), e para a sociedade (aumento da demanda de assistência e do custo do serviço de saúde). Portanto, aumentar a adesao ao tratamento com anticoagulante oral é importante para a pessoa e para a sociedade. Pergunta da pesquisa: é possível aumentar a adesao ao tratamento com anticoagulante oral por meio de uma intervençao educacional?

2) Pessoas que sofreram queimaduras graves precisam continuar a cuidar da área queimada por meio de autocuidado domiciliar depois da alta hospitalar. Sem esses cuidados, a área queimada pode levar mais tempo para cicatrizar, adiando a reabilitaçao do indivíduo e sua volta ao trabalho, e possivelmente requerendo cirurgias revisionais. Como nao se sabe quantas dessas pessoas realizam o autocuidado de maneira apropriada e os motivos pelos quais uma pessoa deixa de realizá-lo, é necessário levantar esses dados. Pergunta da pesquisa: qual é a proporçao de indivíduos que sofreram queimaduras graves que nao aderem ao autocuidado prescrito pós-alta e quais sao os motivos da nao adesao?

Nestes exemplos, fica claro que nem todo estudo tem que ser um estudo de intervençao para ser importante. De fato, o estudo poder ser feito com dados secundários, como por exemplo, bancos de dados administrativos ou clínicos já existentes, ou ele pode ser um estudo qualitativo que vai dar fundamento para a construçao de um instrumento de medida ou para o delineamento de um estudo de intervençao. Precisamos reconhecer que, dependendo da pergunta e de sua importância, temos que utilizar tipos diferentes de estudos.

O acúmulo de conhecimento por meio de pesquisa é, em geral, algo que ocorre de forma gradual. Raramente, um pesquisador resolve um problema complexo num único estudo. Portanto, é essencial que a pergunta e o delineamento do estudo correspondam à fase de conhecimento em que a área de estudo se encontra. É preciso que exista uma coerência entre a pergunta da pesquisa e o delineamento do estudo, de modo que a análise estatística dos dados seja correta e possa responder à pergunta de interesse. Aqui se faz necessário que o pesquisador tenha algum conhecimento básico de delineamento de estudos e análise estatística, da mesma forma que é esperado que o estatístico tenha algum conhecimento básico sobre a área específica do estudo. O pesquisador que confia cegamente no profissional de estatística e que nao entende as análises e interpretaçoes, pelo menos em um nível básico, provavelmente nao está tirando proveito suficiente de seu trabalho árduo.

Acredito que os cursos em nível de pós-graduaçao na área de saúde deveriam incluir cursos de estatística básica e de delineamento de estudos em seus currículos. Seria irrealista pensar que se pode formar bons pesquisadores sem esse requisito mínimo. Da mesma forma, profissionais de estatística nao podem planejar ou analisar estudos sem ter um mínimo de conhecimento da área de interesse. Quando estes dois profissionais colaboram no planejamento do estudo, na análise dos dados, na interpretaçao dos resultados e na sua disseminaçao (por meio de apresentaçoes e publicaçoes), o resultado dessa parceria é bastante recompensador. No entanto, como o número de estatísticos ainda é relativamente pequeno, é essencial que o profissional de saúde se capacite na área de estatística e de planejamento de estudos.

Para o aprimoramento de um estudo, deve-se também avaliar quando e como os resultados poderao ser utilizados. No primeiro exemplo, se a intervençao tiver sucesso e aumentar a qualidade de adesao e a proporçao de pacientes aderentes, talvez seja necessário contratar um enfermeiro dedicado a fazer a intervençao, o que adicionaria um custo ao hospital. Se uma análise do custo-benefício, mesmo que preliminar, demonstrasse que o custo de ter mais um enfermeiro seria menos caro do que o custo da assistência de saúde das pessoas nao aderentes, entao a intervençao poderia ser adotada na área clínica. No segundo exemplo, se a proporçao estimada de queimados que praticam o autocuidado de forma adequada é pequena, entao o pesquisador poderia utilizar a informaçao obtida sobre as barreiras para o autocuidado e planejar um novo estudo com uma intervençao visando eliminar as barreiras e encorajar o autocuidado. O benefício deve ser tanto para o pesquisador como para o paciente e a sociedade. Em suma, nao se pode ignorar a importância do uso dos resultados ou o estudo se tornará um mero exercício acadêmico.

Com o amadurecimento da pesquisa em áreas da saúde, fica claro que os projetos de pesquisa precisam se tornar cada vez melhores, com bom embasamento, justificativas fortes, objetivos claros e delineamento do estudo condizente com a pergunta da pesquisa e a fase de conhecimento do problema. Além disso, ao idealizar um estudo é importante manter em mente como os resultados poderao ser utilizados tanto em pesquisa como na prática clínica. Se seguirmos essas diretrizes, podemos também aumentar a probabilidade de que o estudo seja financiado. Em tempos de recursos financeiros escassos, os estudos bem planejados que demonstrem ter uma aplicaçao prática podem ser mais competitivos.

Para finalizar, só tenho duas questoes. Qual é a pergunta de sua pesquisa? Qual é a importância da pergunta de sua pesquisa?

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