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Relato de Caso

Uso da matriz de regeneração dérmica em retração cicatricial por queimadura: Relato de caso

The use of template dermal regeneration in burn scar contraction: Case report

Henrique César dos Reis1; Dilmar Francisco Leonardi2

RESUMO

OBJETIVO: A ausência de áreas doadoras suficientes ou apresentando má qualidade para o tratamento de retraçao cicatricial após queimaduras determina muitas vezes resultados insatisfatórios. Nesse contexto, surgiram as matrizes de regeneraçao dérmica - e entre elas encontra-se o Integra®. Este estudo discute as aplicaçoes desse substituto dérmico à luz de um caso de retraçao cicatricial significativa.
MÉTODO: Relato de caso. Paciente feminino, 43 anos, sofreu na infância queimadura da regiao cervical, tronco e membros superiores com querosene. Apresentou retraçao cicatricial grave, procurando auxílio médico 29 anos após o acidente. Foi submetida à ressecçao da contratura cicatricial, sendo utilizada matriz de regeneraçao dérmica e posterior enxertia de pele parcial autóloga.
RESULTADOS: Nao houve complicaçoes após os dois procedimentos cirúrgicos. O tempo de internaçao foi de 30 dias. O seguimento de 48 meses. Retraçao cicatricial recorrente foi observada, porém menor que a apresentada previamente pela paciente e sem prejuízo funcional.
CONCLUSOES: O uso da matriz dérmica é uma excelente opçao para o tratamento da retraçao cicatricial. A indicaçao clássica do seu uso é em uma área de cicatriz, com ou sem contratura, abrangendo qualquer local do corpo onde as técnicas de expansao e/ou retalho tecidual nao podem resolver o problema, seja por causa da localizaçao, escassez de pele saudável, ou tamanho da lesao.

Palavras-chave: Queimaduras. Cicatriz. Pele Artificial.

ABSTRACT

OBJECTIVE: The absence of sufficient donor areas or having poor quality for the treatment of scar retraction after burns often determine unsatisfactory results. In this context emerged the matrix of dermal regeneration - and between them lies the Integra®. This study discusses the applications of dermal substitute in the light of a case of significant scar retraction.
METHOD: Case report. Female patient, 43, suffered burns in childhood neck, trunk and upper limbs with kerosene. Had severe scar retraction, seeking medical attention 29 years after the accident. It underwent resection of scar contracture, being used dermal regeneration matrix and subsequent grafting autologous partial skin.
RESULTS: There were no complications after the two surgical procedures. The length of stay was 30 days. The follow-up of 48 months. Recurring scar retraction was observed, but less than previously presented by the patient and without functional impairment.
CONCLUSIONS: The use of the dermal matrix is an excellent option for the treatment of scar retraction. The classic indication of use is in a scarred area, with or without contracture, covering anywhere on the body where the expansion of technical and/or tissue flap can not solve the problem either because of the location, healthy skin shortage, or lesion size.

Keywords: Burns. Cicatrix. Skin, Artificial.

INTRODUÇAO

Com a melhora do tratamento inicial do paciente queimado, por meio de reposiçao volêmica e, principalmente, pela excisao e da enxertia precoce das lesoes, houve um profundo impacto na evoluçao dos indivíduos queimados, ocorrendo aumento da taxa de sobrevida1-3.

Em muitos casos, a contratura cicatricial decorrente da queimadura promove deformidades limitantes e desfigurantes aos pacientes, causando grande impacto sobre a qualidade de vida e até afastamento do convívio social4.

Atualmente, o método mais empregado após a ressecçao da contratura é a enxertia de pele autóloga3,5. Contudo, os pacientes com contratura cicatricial normalmente apresentaram queimaduras extensas e possuem áreas doadoras escassas ou já utilizadas diversas vezes. Além disso, a pouca derme presente no enxerto a ser colocado na área receptora determina qualidade e resistência inferior da regiao enxertada e, principalmente, aumenta a chance da formaçao de nova contratura cicatricial3,6.

Com o advento das matrizes de regeneraçao dérmica, como o Integra®, surgiu a possibilidade de ofertar a esses pacientes a derme que se encontra ausente na área abordada3. Contudo, há questionamentos sobre o benefício de seu uso, por tratar-se de um produto dispendioso.

Este estudo propoe-se, assim, a analisar um caso de retraçao cicatricial, operado no Hospital Governador Celso Ramos em Florianópolis, SC, Brasil, em que foi utilizado o Integra®.


RELATO DE CASO

N.F.L., 43 anos, branca, "do lar", natural e procedente de Campo Erê, SC, foi vítima de queimadura com querosene aos 10 anos de idade, de espessura total, em regiao cervical, torácica e em membros superiores. Na ocasiao, foi atendida no hospital local, sendo procedidas medidas de ressuscitaçao volêmica e posterior desbridamento dos tecidos desvitalizados, tendo a paciente permanecido por dois meses internada.

Evoluiu com retraçao cicatricial grave em regiao cervical, face, ombros e membros superiores logo nos primeiros meses após a queimadura. Aos 18 anos, foi-lhe recomendada cirurgia plástica reconstrutora, porém a paciente teve receio do procedimento e optou por nao o realizar.

A retraçao cicatricial causou restriçao importante da mobilidade cervical impedindo-a de conseguir fechar a rima bucal e de realizar a mastigaçao. Também levou à protrusao e horizontalizaçao da sua arcada dentária inferior. Apesar da dificuldade em alimentar-se, mantinha seu peso estável, ingerindo alimentos líquido-pastosos (Figura 1).


Figura 1 - Paciente na primeira etapa da cirurgia. Observar a retraçao cicatricial cervical grave, causando impossibilidade de fechamento da rima bucal, protrusao e horizontalizaçao da arca dentária inferior. Em azul de metileno, área delimitada a ser ressecada.



A paciente foi encaminhada ao ambulatório de cirurgia plástica do Hospital Governador Celso Ramos, em setembro de 2009. Como comorbidades, apresentava hipertensao arterial sistêmica. Era ex-tabagista, tendo fumado 10 anos-maço, havia parado há 15 anos.

Em 1 de outubro de 2009 foi submetida, sob anestesia geral, à ressecçao da contratura cicatricial cervical e colocaçao da matriz de regeneraçao dérmica (Integra®). O substituto dérmico foi colocado somente após a ressecçao da retraçao cicatricial até uma profundidade que assegurasse um leito vascularizado e nao cicatrizado (Figura 2), sendo fixado com mononylon 4-0 com sutura contínua sobre as bordas da ferida. No curativo utilizou-se Acticoat (curativo de prata). Para imobilizaçao, foi utilizado colar cervical e recomendada a nao mastigaçao no pós-operatório. Somente dieta pastosa foi prescrita. A paciente evoluiu bem, apresentando boa aderência da matriz dérmica, com perda mínima. Nao apresentou sinais de infecçao ou demais complicaçoes.


Figura 2 - Ressecçao da retraçao cicatricial até obtençao de leito vascularizado e nao cicatrizado e aspecto do Integra após o 14º PO. Observar a camada de silicone externa, que será retirada para aplicaçao da enxertia de pele parcial autóloga.



No dia 15 de outubro de 2009 realizou, sob anestesia geral, enxertia de pele parcial autóloga em regiao cervical e torácica sobre o Integra®, tendo como área doadora a regiao anterior da coxa esquerda. A pele foi obtida por meio de dermátomo elétrico. O enxerto foi fixado sobre a matriz dérmica, após remoçao da camada externa de silicone (Figura 2), com mononylon 4-0 e sutura contínua. O curativo realizado foi simples. A paciente realizou novamente imobilizaçao com colar cervical, foi impedida de mastigar e recebeu dieta pastosa durante todos os dias da internaçao. Nao houve intercorrências no pós-operatório, apresentando boa pega do enxerto, com perda desprezível. Teve alta no dia 30 de outubro de 2009.

Desde entao, apresentou melhora significativa da mobilidade cervical, da estética e da autoestima, obtendo alta ambulatorial em 2010.

Em dezembro de 2013, na ocasiao da confecçao deste estudo, a paciente compareceu ao Hospital Governador Celso Ramos. Apresentava recidiva da retraçao cicatricial cervical anterior, principalmente à direita, constatada ao exame físico, porém muito menor que aquela previamente à cirurgia (Figura 3). Conseguia fechar a rima bucal e mantê-la fechada. Fazia os movimentos de extensao cervical (apenas parcialmente) e de flexao (totalmente). Colocara prótese dentária havia 2 anos. Perguntada subjetivamente se insatisfeita, satisfeita ou muito satisfeita com o procedimento, tanto em termos estéticos quanto funcionais, respondeu "muito satisfeita". A recidiva parcial da retraçao cicatricial nao atrapalha seus hábitos de vida diários (Figura 3).


Figura 3 - 48 meses de pós-operatório (vista frontal, em flexao e extensao). Presença de recorrência da retraçao cicatricial menor que a apresentada previamente à cirurgia, com significativa melhora estética e funcional.



DISCUSSAO

As queimaduras constituem um importante problema de saúde pública, gerando enormes gastos financeiros, sendo que a maioria delas ocorre no domicílio, como no caso da paciente relatada. Mesmo com a sobrevivência física, as cicatrizes e as contraturas culminam, com frequência, na distorçao da autoimagem, que será levada para sempre7.

O desenvolvimento da cicatriz patológica dá-se quando o tecido nao tem condiçoes de regeneraçao espontânea e sua cicatrizaçao é dependente da maior produçao de colágeno. É uma das sequelas derivadas das lesoes térmicas profundas, e sua progressao pode levar à desfiguraçao devastadora, à dor e à restriçao funcional8,9, especialmente no organismo em crescimento9.

A modificaçao de uma cicatriz pode ser observada, precocemente, em até duas semanas após a lesao, mas o processo de cicatrizaçao tende a continuar por 1 a 2 anos8.

Atualmente, o método mais empregado após a ressecçao da contratura é a enxertia de pele autóloga3,5.

Procedida a ressecçao da contratura, pode-se utilizar enxerto de pele total ou parcial. O enxerto de pele total, por conter toda a derme, apresenta como vantagens menor contraçao do enxerto, cobertura mais resistente da área receptora, menor incidência de novas contraturas e melhor resultado estético. Por outro lado, há maior dano à área doadora e menor taxa de integraçao do enxerto3. O enxerto de pele parcial promove menor dano à área doadora, com maior taxa de integraçao do enxerto; entretanto, em decorrência da menor quantidade de derme, há maior contraçao do enxerto, maior fragilidade na área enxertada, incidência superior de novas contraturas nas regioes abordadas, além de o resultado estético ser pior quando comparado ao enxerto de pele total3,6.

Idealmente, o melhor tipo de enxerto a ser utilizado na abordagem da contratura cicatricial de queimados seria aquele com maior quantidade de derme possível; todavia, pelos fatos acima mencionados, utiliza-se o enxerto de pele parcial3,5,10.

A falta de áreas doadoras disponíveis é o principal fator limitante para o fechamento da ferida. Este dilema foi o impulso para o desenvolvimento e o uso de vários produtos artificiais substitutos de pele11.

Entre as matrizes de regeneraçao dérmica, encontra-se o Integra®, atualmente o substituto de pele mais aceito e usado em pacientes queimados11. É constituído por duas camadas: a primeira (superior) é formada por uma lâmina de silicone, que atuaria temporariamente como a epiderme, prevenindo a perda de líquido e a invasao microbiana; e a segunda camada (inferior) é constituída por uma estrutura porosa, composta por ligaçoes cruzadas de colágeno bovino e sulfato 6 de condroitina, funcionando como um modelo para regeneraçao dérmica. Essa estrutura é infiltrada pelos fibroblastos autólogos que sintetizam a nova derme, bastante semelhante à derme humana5,11,12. Desde que foi descrito pela primeira vez, em 1981, por Burke & Yannas, e aprovado pela Food and Drug Administration, em 1996, Integra® tornou-se parte do arsenal do cirurgiao de queimados, tanto para as queimaduras agudas quanto para as reconstruçoes pós-queimaduras11.

Este produto tem uma antigenicidade muito baixa e degrada em um período controlado de tempo, sendo substituído por colágeno do hospedeiro, sem qualquer tecido cicatricial adicional. Outros benefícios do Integra® incluem o mínimo de dor e desconforto, a cicatrizaçao ideal e a capacidade para cobrir lesoes sem sacrificar outros tecidos do paciente13. Tem melhores resultados em relaçao à estética e à elasticidade quando comparado com enxerto de pele parcial autólogo sozinho11.

Entretanto, há desvantagens em seu uso: o seu alto custo, ser suscetível a infecçoes (que levam na maioria das vezes à perda de parte ou de todo o Integra®), ter uma taxa de falha de aproximadamente 25%10,12 e necessitar de um segundo procedimento cirúrgico após três ou quatro semanas para substituir a camada superficial de silicone com enxertos de pele parciais autólogos, aumentando, assim, tempo de internaçao e dos custos12.

Na paciente acompanhada, o tempo de internaçao foi de 30 dias e o período de acompanhamento foi de 48 meses. O resultado estético foi bastante superior ao anterior à cirurgia. A retraçao cicatricial foi menor que a apresentada previamente e nao limitou suas atividades cotidianas.


CONSIDERAÇOES FINAIS

Apesar de ser uma técnica intrincada e de longa duraçao (por ser realizada em duas etapas), é viável, principalmente quando cicatrizes extensas em áreas do corpo desafiadoras necessitam ser tratadas9.

Embora a curva de aprendizado inicial tenha sido íngreme, têm sido descobertas várias vantagens com o uso da matriz de regeneraçao dérmica14. Dentre elas, a possibilidade de usá-lo quantas vezes for preciso, sem prejuízo significativo na morbidade do paciente como ocorria quando se retirava grandes quantidades de enxerto autólogo, a necessidade de enxerto de pele autólogo muito fino na segunda etapa da cirurgia e, o mais importante, permitir a regeneraçao da pele funcionalmente e esteticamente próximas da normalidade. O controle da dor e reabilitaçao rápida também parecem ser vantagens dessa técnica14.

O custo elevado e a necessidade de dois procedimentos podem ser empecilhos em seu uso. Pesando a relaçao custo-benefício, a maioria dos estudos fala a favor do Integra®15, o qual nao deve substituir todos os outros métodos, mas claramente observa-se que esta técnica é uma adiçao válida para as opçoes atuais14.


REFERENCIAS

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1. Cirurgiao geral, residência médica no Hospital Governador Celso Ramos, em Florianópolis, SC, no período 2012-2014; graduado em Medicina pela Universidade Federal de Santa Maria, em 2011, Florianópolis, SC, Brasil
2. Cirurgiao plástico, membro titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, mestrado e doutorado, ambos pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre e Fundaçao Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre, Porto Alegre, RS. Professor de Medicina da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), Palhoça, SC, Brasil

Correspondência:
Henrique César dos Reis
Rua Angelo Laporta, 293, Centro
Florianópolis, SC, Brasil - CEP 88020-600
E-mail: henriquecreis@gmail.com

Artigo recebido: 16/09/2015
Artigo aceito: 12/12/2015

Trabalho apresentado ao departamento de cirurgia geral do Hospital Governador Celso Ramos como requisito para a conclusao da residência médica em cirurgia geral. Nao há conflitos de interesse. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa.

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