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Artigo Original

Queimadura por ácido hidrofluorídrico e descontaminação com quelante anfótero e gluconato de cálcio: relato de caso

Hydrofluoric acid burn and decontamination with amphoteric chelator and calcium gluconate: case report

Carlos Alberto Yoshimura1; Laurence Mathieu2; Alan H. Hall3; Mário G. Kool Monteiro4; Décio Moreira de Almeida5

RESUMO

Um trabalhador sofreu projeçao de ácido hidrofluorídrico a 70% de concentraçao em aproximadamente 10% de superfície corpórea (SC), causando queimaduras químicas de 1º, 2º e 3º graus em face, tronco e membro inferior esquerdo. A descontaminaçao inicial envolveu enxágue com água, remoçao da vestimenta, e enxágue adicional com mais água, bem como aplicaçao tópica de soluçao de óxido de magnésio e analgésico intravenoso para controle da dor. Após retardo de aproximadamente 3 horas, realizou-se descontaminaçao ativa com 5 litros de soluçao ativa de um quelante anfótero, Hexafluoriner, seguida de aplicaçao intravenosa, intradérmica perilesional e tópica de gluconato de cálcio. Alívio da dor e sensaçao refrescante foram relatados após aplicaçao do quelante. Nao ocorreu intoxicaçao sistêmica significante, embora isto tenha ocorrido em casos previamente relatados de exposiçao ao ácido hidrofluorídrico concentrado. Apesar das queimaduras, o paciente foi liberado da Unidade de Terapia Intensiva após 2 dias, e os tratamentos cirúrgicos posteriores, enxertia, tiveram bons resultados.

Palavras-chave: Queimaduras. Queimaduras químicas. Ácido fluorídrico/efeitos adversos. Gluconato de cálcio.

ABSTRACT

A worker was splashed with 70% hydrofluoric acid (HF), sustaining approximately 10% total body surface area (TBSA) 1st-3rd degree chemical skin burns on the face, trunk and left leg. Initial decontamination involved water rinsing, removal of clothing, and more water rinsing, as well as topical application of a magnesium oxide solution and administration of intravenous narcotics for management of severe pain. After a delay of approximately 3 hours, the active skin decontamination solution Hexafluoriner, 5 liters, was used followed by intravenous, intradermal perilesional and topical application of calcium gluconate. Pain relief and a cooling sensation were quite prompt. No significant systemic toxicity occurred, although this has occurred in previously reported concentrated HF exposure cases. While burns did develop, the patient was released from the intensive care service after 2 days and after skin grafting had a good outcome.

Keywords: Burns. Burns, chemical. Hydrofluoric acid/adverse effects. Calcium gluconate.

O Acido Hidrofluorídrico (H+) concentrado (49-70% ou anidro) pode causar queimaduras sérias na pele e intoxicaçoes sistêmicas devido à sua "dupla açao". O íon hidrogênio (H+) causa injúria à pele, criando uma soluçao de continuidade, permitindo, assim, que o íon fluoreto (F-) penetre no sistema circulatório, resultando em intoxicaçao importante e colapso cardiovascular por meio da captura de cálcio e magnésio, o que resulta em liberaçao de potássio pelas hemácias1,2. Casos de exposiçao cutânea ao HF concentrado, especialmente na face ou na virilha, de mais de 1-2% da superfície corpórea (SC) raramente sobrevivem3,4. Procedimentos padroes para a descontaminaçao envolvem enxágue com água corrente e aplicaçao tópica de gel de gluconato de cálcio, embora a aplicaçao tópica de outros produtos, como sais de magnésio, também seja utilizada.

O caso aqui relatado foi de demora de aproximadamente 3 horas após exposiçao com HF concentrado para início da descontaminaçao ativa da pele utilizando soluçao de Hexafluoriner, resultando em alívio rápido da dor aguda e sensaçao refrescante, com administraçao intravenosa, intradérmica perilesional e tópica de gluconato de cálcio a posteriori.


RELATO DE CASO

Um trabalhador de 38 anos de idade sofreu projeçao de 4 litros de HF a 70% de concentraçao em face, tronco, coxa e perna esquerda, por conta de uma empilhadeira que esbarrou inadvertidamente em um frasco de HF no andar superior, vindo a projetar-se sobre uma escadaria, destampar-se e extravasar todo o seu conteúdo sobre a vítima, atingindo abdome e membros inferiores (Figuras 1 a 3).


Figura 1 - Previamente à descontaminaçao, com lesoes de 2º e 3º graus instalando-se.


Figura 2 - Previamente à descontaminaçao, com lesoes de 2º e 3º graus instalando-se.


Figura 3 - Queimadura em abdome.



Ainda de uniforme, realizou-se descontaminaçao inicial com água corrente em chuveiro de emergência por alguns minutos, despido e procedido ao enxágue com mais água.

O paciente foi conduzido ao hospital de referência, onde uma soluçao de óxido de magnésio foi aplicada nas lesoes, com posterior oclusao das mesmas e administrado analgésico intravenoso frente ao quadro álgico, permanecendo em observaçao na enfermaria.

Devido à restriçao logística (distância) e alguns detalhes técnicos, houve retardo de pouco mais de 3 horas após o acidente, para que soluçao de Hexafluoriner pudesse ser aplicada na descontaminaçao tópica ativa. Queimaduras de primeiro, segundo e terceiro graus se desenvolveram.

Durante a aplicaçao tópica por 5 a 6 minutos com 5 litros de Hexafluoriner, o paciente relatou sensaçao refrescante e alívio da dor; e os eritemas iniciais de face e tronco retrocederam rapidamente. Em seguida, foram administrados 40 ml de gluconato de cálcio a 10% intravenoso em 500 ml de soro fisiológico a 0,9% e 40 ml de gluconato de cálcio a 10% intradérmico perilesional, além do gel tópico de gluconato de cálcio a 2,5% (Figuras 4 e 5).


Figura 4 - Aplicaçao tópica de gluconato de cálcio.


Figura 5 - Infiltraçao perilesional de gluconato de cálcio.



Nao houve evoluçao para toxicidade sistêmica como seria esperado, baseando-se em relatos de casos anteriores. O paciente foi liberado da Unidade de Tratamento Intensivo no segundo dia de internaçao, sem maiores intercorrências, apesar das alteraçoes mínimas em seu cálcio sérico (um valor baixo obtido de 7,9 mmol/L dentro das primeiras 24 h; normal: 8,5-10,5 mmol/L) e magnésio sérico (um valor baixo obtido de 1,4 mmol/L dentro das primeiras 12 horas; normal: 1,9-2,5 mmol/L). Nao ocorreu acidose metabólica evidenciada por valores de gasometria arterial. A radiografia de tórax nao revelou alteraçoes, bem como o padrao eletrocardiográfico. O paciente foi submetido a procedimentos cirúrgicos na rotina, como debridamentos cirúrgicos e enxertias de pele, com bons resultados (Figuras 6 e 7).


Figura 6 - Debridamento cirúrgico no 2º dia de internaçao.


Figura 7 - Pós-operatório tardio de 90 dias.



DISCUSSAO

O método para descontaminaçao amplamente recomendado para exposiçao com HF concentrado é o enxágue inicial com água, seguido da aplicaçao tópica de gel de gluconato de cálcio de 2,5 a 3,0%. Nao considerando os efeitos da hipotonicidade, a água remove da pele o HF nao absorvido, enquanto o íon cálcio (Ca+2) do gluconato de cálcio liga-se ao íon fluoreto (F-) como fluoreto de cálcio (CaF2), mitigando os efeitos cutâneos e sistêmicos.

Entretanto, casos clínicos publicados com o uso de água e gluconato de cálcio na descontaminaçao inicial e tratamento para exposiçao ao HF concentrado nao forneceram evidências convincentes da eficácia consistente na prevençao de queimaduras cutâneas graves ou toxicidade sistêmica, incluindo óbito. Sheridan et al.5 relataram o caso de um trabalhador que teve 5% de SC atingida (abdome e coxa direita) com HF anidro. A despeito da descontaminaçao imediata com água e injeçao subcutânea de gluconato de cálcio 10%, uma queimadura profunda se desenvolveu, requerendo excisao cirúrgica e enxerto de pele. Nguyen et al.6 reportaram o caso de um trabalhador de manutençao que sofreu projeçao de HF anidro no lado direito da face e orelha ipsilateral. A despeito do enxágue imediato com água e aplicaçao de cloreto de benzalcônio, uma queimadura importante se desenvolveu, requerendo intervençao cirúrgica. Note-se que o acidente foi tratado com infusao de 10% de gluconato de cálcio na artéria carótida direita externa, o que nao preveniu o desenvolvimento da queimadura6.

Houve sobrevida em alguns casos de envenenamento sistêmico com HF, entretanto frequentemente ocorreram graves anormalidades eletrolíticas (hipocalcemia, hipomagnesia e hiperpotassemia) e acidose metabólica significante, algumas vezes resultando em anormalidades no eletrocardiograma e, frequentemente, arritmias ventriculares como Torsade de Points, fibrilaçao ventricular ou outras. Períodos de recuperaçao tendem a ser significativamente longos em exposiçoes nao fatais.

A aplicaçao do quelante anfótero em exposiçoes pelo HF determina uma descontaminaçao ativa, mesmo com retardo, como no caso aqui relatado, e pode levar a melhor desfecho e merece consideraçao. Uso tópico e parenteral de sais de cálcio, concomitantemente, também foi benéfico neste caso, configurando-se numa associaçao de condutas para descontaminaçao química diante do HF, com sua gravidade e letalidade notoriamente comprovadas.


REFERENCIAS

1. Segal EB. First aid for an unique acid, HF: a sequel. Chem Health Saf. 2000;7(1):18-23.

2. Caravati EM. Acute hydrofluoric acid exposure. Am J Emerg Med. 1988;6(2):143-50.

3. El Saadi MS, Hall AH, Hall PK, Riggs BS, Augenstein WL, Rumack BH. Hydrofluoric acid dermal exposure. Vet Hum Toxicol. 1989;31(3):243-7.

4. Chataigner D, Garnier R, Bonin C. Brûlures cutanées et intoxication systémique mortelle secondaires à une projection d'acide fluorhydrique. Arch Mal Prof. 1992;53:13-29.

5. Sheridan RL, Ryan CM, Quinby WC Jr., Blair J, Tompkins RG, Burke JF. Emergency management of major hydrofluoric acid exposures. Burns. 1995;21(1):62-4.

6. Nguyen LT, Mohr WJ 3rd, Ahrenholz DH, Solem LD. Treatment of hydrofluoric acid burn to the face by carotid artery infusion of calcium gluconate. J Burn Care Rehabil. 2004;25(5):421-4.










1. Professor de Pós-Graduaçao da Universidade Católica de Santos -UNISANTOS; Assistente do Serviço de Cirurgia Plástica e Queimados da Santa Casa de Santos.
2. Doutora em Engenharia Química - Valmondois, França.
3. Médico Consultor de Toxicologia - Colorado School of Public Health, Denver, Colorado, EUA.
4. Doutor em Química - Especialista em Emergências Químicas.
5. Técnico de Enfermagem do Trabalho da Refinaria Presidente Bernardes - Cubatao.

Correspondência:
Carlos Alberto Yoshimura
Av. Barao de Paranapiacaba, 177/62
Santos, SP, Brasil - CEP 11050-250

Recebido em: 9/7/2009
Aceito em: 13/10/2009

Trabalho realizado no Serviço de Cirurgia Plástica e Queimados da Santa Casa de Santos, Santos, SP, Brasil.

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