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Editorial

Banco de pele no Brasil

Skin banking in Brazil

Wandir Schiozer

O enxerto de pele homóloga pode representar a diferença entre a vida e a morte de grandes queimados. A enxertia homóloga é um tratamento precioso quando nao se dispoe de condiçoes para a realizaçao do enxerto autólogo. Vários trabalhos demonstram a reduçao de mortalidade de grandes queimados quando se dispoe dessa alternativa1.

O enxerto de pele homóloga reduz as perdas hidroeletrolíticas, diminui as perdas proteicas, previne a dessecaçao da ferida, suprime a proliferaçao bacteriana, reduz a dor, diminui as perdas metabólicas, promove neovascularizaçao, induz a epitelizaçao, prepara o leito da ferida para enxertia definitiva e pode proporcionar uma matriz dérmica para enxertos epiteliais. Apesar das inúmeras vantagens, nao é fácil obter enxertos alógenos. A pele doada precisa ser acondicionada e conservada até o momento de sua utilizaçao.

A conservaçao de pele humana foi descrita no início do século XX por Wentscher, que relatou a enxertia de pele refrigerada por até 14 dias, mas somente em 1944 Webster2 relata o sucesso na utilizaçao de enxertos de pele autólogos conservados por 3 semanas a 7º C. Em 1949, foi criado o banco de tecidos da Marinha dos Estados Unidos, provavelmente o primeiro banco de pele no mundo3.

A partir da introduçao de novos meios de preservaçao compostos por plasma, soluçoes fisiológicas e meios de cultura de tecidos, vários autores relataram suas experiências com a preservaçao de pele por refrigeraçao. Os resultados encontrados nao apresentaram diferenças significativas. De uma forma geral, através de refrigeraçao, a viabilidade do tecido foi mantida por pelo menos 15 dias e, no máximo, 30 dias, porém com perda gradual de viabilidade celular e degeneraçao das características biológicas dos materiais.

O congelamento ou criopreservaçao pode manter as características do tecido por muito mais tempo, porém o simples congelamento de um tecido forma cristais de gelo no interior da célula, que rompem a membrana celular e desorganizam a matriz extracelular. Em 1952, Billingham & Reynolds4 descreveram o uso de glicerol a 15% como meio de proteger a pele dos efeitos deletérios do congelamento. Lovelock5, em 1953, demonstrou que o glicerol protegia os tecidos contra os efeitos nocivos do congelamento, ao agir como um tampao em relaçao ao aumento da concentraçao salina no citoplasma. Assim, o tecido deve ser protegido dos efeitos do congelamento com glicerol ou dimetilssulfóxido (DMSO). Essas substâncias diminuem a formaçao dos cristais de gelo; no entanto, sao citotóxicas à temperatura ambiente, exigindo rapidez no processo de congelamento.

A conservaçao de tecidos em glicerol em altas concentraçoes (acima de 85%) teve início com os trabalhos de Pigossi na conservaçao de dura-máter canina em glicerol a 98%. Basile conservou pele porcina em glicerol 98%, obtendo resultados clínicos muito semelhantes ao uso de pele porcina liofilizada6. Kreiss et al.7 desenvolveram e utilizaram o método para pele humana, esse trabalho originou um dos maiores bancos de pele do mundo, o Euro Skin Bank, estabelecido na Holanda. A conservaçao em glicerol deve ter início até 24 horas da retirada do tecido e sua refrigeraçao. Com a exposiçao ao glicerol em altas concentraçoes, a célula torna-se inviável, mas a matriz e a arquitetura proteica da derme sao preservadas.

Em 1956, foi criado o banco de pele da Unidade de Queimaduras do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de Sao Paulo. Os enxertos eram acondicionados em um refrigerador localizado na própria unidade. Eram conservados enxertos autólogos, quando nao se realizava a enxertia no mesmo dia da colheita, e enxertos homólogos. Embora houvesse reconhecido benefício na cura de pacientes da unidade de queimaduras, havia disponibilidade limitada e imprevisível, porque a pele era armazenada por refrigeraçao por períodos curtos e com qualidade variável. Nao existia normatizaçao específica e nao havia recursos disponíveis para expansao desses programas.

Somente em 1997, o transplante de órgaos e tecidos humanos foi regulamentado no Brasil por meio da Lei nº 9434, instituindo critérios para a retirada de órgaos e tecidos de doadores in vivo ou post-mortem. A lei estabelece que a retirada de tecidos, órgaos ou partes do corpo humano post-mortem deve anteceder diagnóstico de morte encefálica, realizado por dois médicos nao participantes da equipe de remoçao e transplante, baseado em critérios clínicos e tecnológicos pré-definidos8.

Inicialmente, a doaçao de órgaos e tecidos era presumida para qualquer indivíduo, porém com a Lei nº 10211, em 2001, realiza-se o consentimento informado, com consulta familiar para autorizaçao da doaçao8.

Em 1997, a Lei nº 2268 estabelece que o Sistema Nacional de Transplantes (SNT) gerencie em nível nacional a captaçao e distribuiçao de órgaos, tecidos e partes do corpo humano para finalidades terapêuticas (exceto sangue, esperma e óvulos). Tanto a captaçao como os transplantes de órgaos e tecidos só podem ser realizados por equipes e instituiçoes médicohospitalares especializadas e cadastradas nas Secretarias de Saúde estaduais e no SNT8.

Entretanto, apenas recentemente, com a publicaçao da Portaria 2600 do Ministério da Saúde, começou a se estabelecer normas específicas para o funcionamento dos Bancos de Pele. Sao normas que consideram as indicaçoes e obrigatoriedades relacionadas aos transplantes de pele e ao funcionamento dos Bancos de Tecidos e normas para instalaçoes físicas, equipamentos, triagem, retirada, processamento, armazenamento, transporte e disponibilizaçao dentro de padroes técnicos e de qualidade que a complexidade do procedimento requer8.

O novo banco de tecidos do Instituto Central do Hospital das Clínicas de Sao Paulo foi inaugurado oficialmente em outubro de 2000, contando com instalaçoes próprias de acordo com as normas do SNT. Em janeiro de 2001, foi plenamente operacionalizado, com armazenamento de enxertos de pele processados em glicerol a 75%. A evoluçao das atividades do novo Banco de Pele pode ser medida pelo impacto nos dois primeiros anos de funcionamento: foram realizados 53 de transplantes de pele, ao invés dos 4 a 5 por ano realizados nos anos anteriores. Durante o período de 2001 a 2006, o número total de doadores de pele foi 152, gerando aproximadamente 153.000 cm2. Nos últimos anos, houve um período de inatividade para reforma, adequaçao e ampliaçao das instalaçoes e, em 2012, o banco está novamente em plena atividade.

Em 2005, foi inaugurado o Banco de Tecidos Humanos da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, que em 2010 passou a se chamar Banco de Tecidos Dr. Roberto Corrêa Chem. Um levantamento do período de fevereiro de 2008 a julho de 2010 verificou que foram realizados 35 procedimentos de colheita em doadores que se enquadravam dentro das exigências da CNT, e cujas famílias concederam autorizaçao. As doaçoes foram divididas em 108 lotes. Desses, 22 (20,04%) foram descartados, número condizente com a média de bancos de tecido internacionais. Os 86 lotes restantes forneceram um total de aproximadamente 47.756,1 cm2 de tecido viável para transplante, com média de 555,3 cm2 por lote e 1364,46 cm2 por doador. Foram enviados e utilizados em pacientes queimados 35.415 cm2 de pele alógena, em 4 regioes do país. Restaram liberados para uso, 12.341,1 cm2 de tecido conservado em glicerol e resfriado9. O Banco de Pele do Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre, assim como o de Sao Paulo, ainda enfrenta dificuldades em decorrência do pequeno número de doadores.

No final de 2011, foi inaugurado o primeiro banco de tecidos do Norte-Nordeste, que vai funcionar dentro do Instituto Materno Infantil de Pernambuco (IMIP), no Recife, que tem planejamento para funcionamento de um banco de pele.

Apesar da evoluçao na última década, ainda há muito a fazer. Se considerarmos a dimensao e a incidência de queimaduras no Brasil, é evidente que a disponibilidade de pele homóloga é hoje muito limitada, muito aquém do que se dispoe, por exemplo, nos Estados Unidos e Europa. A oferta nao é suficiente nem para as próprias regioes que dispoem de banco de pele. É fundamental que os governos e os profissionais envolvidos com o tratamento das queimaduras incentivem a doaçao de pele e apoiem os bancos de tecidos existentes, assim como também a implantaçao de novos bancos de pele nas diversas regioes do país.


Wandir Schiozer
Editor


REFERENCIAS

1. Kagan RJ, Robb EC, Plessinger RT. Human skin banking. Clin Lab Med. 2005;25(3):587-605.

2. Webster JP. Refrigerated skin grafts. Ann Surg. 1944;120(4):431-48.

3. Matthews DN. Storage of skin for autogenous grafts. Lancet. 1945;2:775-8.

4. Billingham RE, Reynolds J. Transplantation studies on sheets of pure epidermal epithelium and on epidermal cell suspensions. Br J Plast Surg. 1952;5(1):25-36.

5. Lovelock JE. The haemolysis of human red blood-cells by freezing and thawing. Biochim Biophys Acta. 1953;10(3):414-26.

6. Paggiaro AO, Mathor MB, Carvalho VF, Pólo E, Herson MR, Ferreira MC, et al. Estabelecimento de protocolo de glicerolizaçao de membranas amnióticas para uso como curativo biológico. Rev Bras Queimaduras. 2010;9(1):2-6.

7. Kreis RW, Vloemans AFPM, Hoekstra MJ, Mackie DP, Hermans RP. The use of non-viable glycerol-preserved cadaver skin combined with widely expanded autografts in the treatment of extensive third-degree burns. J Trauma. 1989;29(10:51-4.

8. http://www.brasilsus.com.br/legislacoes

9. Minuzzi Filho ACS, Chem E, Bins Ely P, Valiati AA, Fauri M, Cunha TF. Estatísticas do Banco de Pele do Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre, anos de 2008-2010. Rev Bras Cir Plast. 2010;25(supl):93.

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